CAPÍTULO 14

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GEOVANE

Nunca pensei que comprar vestes fosse algo tão cansativo. As roupas das gêmeas estavam muito curtas e apertadas, mas a última tentativa de levar elas pra fazerem compras sozinhas resultou em ainda mais roupas curtas e apertadas, mas dessa vez de propósito. Sei que eu poderia (e deveria) pedir ajuda pra minha mãe, irmã ou cunhada, e todas estariam muito dispostas a fazer isso por mim. Mas enquanto comia uma refeição na casa de dona Zuleica, dividindo a mesa com o rapaz que tem sido motivo de todas as minhas dores de cabeça (e provavelmente do doutor Túlio também. Acho que o terapeuta não aguenta mais escutar sobre Lucian durante as nossas conversas), tive a inspiração de pedir ajuda pra ele. Percebi que ele ficou tenso quando eu pedi pra conversar, mas seus olhos brilharam assim que eu disse que precisava de ajuda com as meninas. Então aqui estamos nós. Depois de duas horas de viagem, chegamos em uma cidade muito grande, com muitas opções disponíveis (diferente daquela em que moramos, que tem apenas um shopping).

As meninas se divertiram durante a viagem toda, e Lucian embarcou junto. Cantamos as músicas que tocavam no rádio a plenos pulmões, e o carro parecia uma boate ambulante, de tanto barulho. No meio do caminho, ele se ofereceu pra pegar a direção pra eu descansar um pouco, e me emprestou o travesseiro que ele estava usando. Discretamente, inspirei a fragrância impregnada no tecido, e os pelos da minha nuca arrepiaram.

Depois de muitas sessões com o terapeuta, já tenho uma noção do que é que eu estou sentindo, mas isso não faz o menor sentido. Nenhum mesmo. Estive casado com a Cátia por 20 anos. Trocamos nossos primeiros beijos na calçada da casa dela, quando pedi a mão dela em casamento pro seu Virgílio. Nessa época eu e ela tínhamos acabado de completar 18 anos, e até então eu nunca havia sentido atração por nenhuma outra pessoa. Enquanto meus amigos se vangloriavam de visitas a motéis, eu me mantinha firme no compromisso que firmei com Cátia aos 16 anos. Ela foi minha primeira namorada, meu primeiro beijo, meu primeiro filme no cinema escuro, meu primeiro amor, meu primeiro tudo. E durante toda a minha vida eu nunca senti vontade de estar com outra pessoa que não fosse minha esposa. Pode parecer pouco verossímil, mas eu nunca traí a Cátia nesses 20 anos de casados, e nos 2 anos de namoro em que a intimidade máxima permitida era pegar nas mãos, ou o suave toque dos labios em suas palmas macias. E nunca senti vontade de fazer disso, nem cogitei uma traição. Nem mesmo comigo mesmo, pois raríssimas vezes eu me masturbo. Não acho que eu tenha um problema, apenas não consegue entrar na minha cabeça que uma pessoa pode estar junto com alguém com quem se importa, e sentir vontade de trair.

Então fiquei absolutamente em pânico quando doutor Túlio disse que todos os sintomas indicam que eu estou interessado no rapaz que tem feito morada na minha cabeça. Senti muitas coisas durante o mês que ele esteve fora. Mas a principal delas foi saudades. Sinto falta de chegar em casa e ver o olhar brilhante das minhas filhas. Do cheiro de bolo, dos cabelos trançados com flores, dos filmes juvenis com a luz da sala apagada, dos passeios inusitados por córregos, das trilhas sem nada além de repelente e uma garrafa de água pra 5 pessoas dividirem, das noites em que eles decidem de última hora inventarem alguma coisa na cozinha, e de quando ele dormia aqui depois de fazerem uma bagunça indescritível em toda superfície plana do cômodo onde tentaram preparar alguma receita nova que viram no YouTube. Da admiração ofuscante que emana das meninas sempre que o jovem está por perto. Da cerveja que a gente tomava sempre antes de ele ir embora, ou quando ele dormiria aqui.

Quando expliquei essas coisas pro terapeuta, ele pareceu entender o motivo do meu desespero. Mas ao invés da resposta que traria paz pra minha vida, eu recebi uma bomba com poder de destruição absoluto. Não posso correr o risco de fazer algo idiota que fará ele ir embora de novo, e dessa vez pra sempre. Nunca tive problema com a questão de gênero. Meus pais sempre foram muito abertos com a gente sobre isso. Então o que me apavorou não foi a possibilidade de estar apaixonado por um cara, e sim por eu sentir vontade de beijar ele menos de um ano depois da morte da minha esposa. E pra não correr o risco de fazer besteira eu me contento com pequenos furtos, como essas fungadas discretas que estou dando no travesseiro, enquanto finjo dormir.

Era uma vez: um quase conto de FadasOù les histoires vivent. Découvrez maintenant