CAPÍTULO 04

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GEOVANE

Hoje, depois de muito atraso, vamos começar o plantio da soja. Eu fui irresponsável ao não começar antes, mas não consegui cumprir com os prazos depois que Cátia se foi. Mas a vida não para. Não posso arrastar meu luto por tempo indeterminado, apesar de a dor continuar. Minha esposa não admitiria algo assim. Então estou tentando seguir em frente, mesmo que me movendo lentamente. Minhas filhas também não permitem que eu me afunde completamente. Ontem estivemos no aniversário do jovem professor, e eu pude ver a admiração brilhando nos olhos delas. Manu já trocou a futura profissão: de veterinária, ela agora quer ser professora. E isso me deixa muito satisfeito: saber que a pessoa responsável pela educação delas está inspirando elas em um bom caminho. Admito que estou sendo muito falho, não tenho ajudado elas em nada. Mas aos poucos, vou recuperando a forma. E quero voltar a ser a pessoa com quem elas possam contar.

Depois do plantio, pretendo realizar a festa que sempre fazemos todos os anos, e eu ainda não sei como faremos isso sem minha esposa. Estou contando com a ajuda dos meus pais e do meu sogro pra fazer isso acontecer. E é claro, minhas filhas maravilhosas. Geralmente fazemos a festa antes do Natal, então vamos correr pra ver se dá tempo de organizar tudo o que precisa ser feito. Mari está mostrando ser de grande ajuda quando se trata de cuidar dos afazeres domésticos, e mesmo que Manu esteja sempre ajudando, me preocupo com as mudanças em seu humor irritadiço. Ultimamente tudo é motivo pra elas discutirem. Caso a situação não melhore, terei que levar elas pra uma consulta com o psicólogo na cidade vizinha. Milena continua como sempre: não se pode piscar perto dela que uma arte ela apronta, e isso é a única coisa que não muda.

O tempo que levamos pra plantar foi ágil, então dia 20 vamos realizar a comemoração. Não quero muitas pessoas, apenas a família e alguns amigos próximos. As meninas fazem questão da presença do professor, e não sei se devo me preocupar com essa admiração toda. Futuramente vou investigar mais a fundo. Mesmo tendo tantos professores, o apego que parecem ter pelo jovem é um tanto alarmante. Ou talvez eu seja só um velho pai, doido de preocupação e com a cabeça cheia de ciúmes dos meus bebês. E tenho que admitir que o tal Lucian é muito gentil e cativante.

Com a preparação da festa, o movimento está intenso, e a casa parece um formigueiro. Não tenho tempo nem pra pensar, e de certa forma, isso é bom. A sensação dolorosa de não ter mais Cátia comigo ainda me perfura, e eu não consigo dormir no nosso quarto. Pra evitar a dor de ver a cama com o lado dela vazio, eu agora me mudei pro sofá. Não consegui doar as roupas dela, e olhar seus vestidos pendurados algumas vezes me ajuda a imaginar que ela vai voltar. Sei que é loucura, porque eu sei que ela já se foi. Mas ainda falo como se ela pudesse me ouvir.

A festa está bem animada, e as pessoas parecem seguir o fluxo: alguns dançam, outros comem, outros conversam, mas todos estão aparentando se divertirem. Por estar um pouco cansado, fui me esconder na cozinha, e fiquei surpreso quando vi que já tinha outra pessoa parecendo usar o mesmo cômodo com a mesma finalidade que eu. O professor Lucian me deu um sorriso constrangido e me pediu pra não dizer a Zuleica onde ele estava. Pelo que eu entendi, ele estava fugindo da tentativa dela de o "desencalhar", e pela aparência de susto gravada no rosto, ele estava levando essa fuga muito a sério. Sentamos na mesa e tomamos nossas cervejas. E pela primeira vez, eu apreciei conversar com outro adulto. Depois da morte da minha esposa, todos olham pra mim como coitadinho, ou fazem com que eu me sinta ainda pior ao me dizerem que vou superar, e que o tempo vai me ajudar a esquecer. Conversamos por quase uma hora, e eu não vi o tempo passar. Ele domina assuntos variados, além de que torcemos pelo mesmo time. Ao fim da conversa, convidei ele pra vir tomar um café qualquer dia, e cada um foi cuidar da vida.

A noite está especialmente linda hoje, e até o céu parece querer comemorar com a gente. Depois que todos foram embora, e eu coloquei as meninas na cama, me sentei no sofá pra ler um pouco antes de dormir, e me peguei pensando na conversa que tive na cozinha. Estou entendendo porque as minhas filhas parecem tão encantadas com o jovem: é porque ele é realmente encantador. Me virei mais um pouco no sofá, e depois de quatro meses dormindo fora do quarto, hoje resolvi que dormiria na cama novamente. Apaguei as luzes e subi pro segundo andar, e pra minha surpresa, não senti a dor costumeira quando me deitei na cama. Ainda senti a falta da minha esposa, mas não senti que havia uma serra me cortando ao meio. Imagino que isso é um bom sinal. Dormi quase imediatamente, e sonhei com a Cátia usando o vestido com flores de girassol, que destacava seus olhos verdes e cabelos vermelhos. Acordei chorando de saudades, mas grato por ter visto ela mais uma vez, mesmo que em sonho.

As férias terminam logo, e pela primeira vez vou levar as meninas pra comprarem o material escolar sem a presença da mãe. As gêmeas vão começar o último ano do ensino médio, e eu não tenho nenhuma ideia de o que será preciso comprar (no começo da vida escolar, ambas foram adiantadas de série, pois já começaram com o conhecimento avançado e estavam a frente de outras crianças). Quando chegamos na cidade, Milena com os olhos mais pidões do universo, e com uma voz dengosa, me puxa pela manga da camisa.

- Papai, podemos comer na tia Zuleica antes?

Ao que as duas traidoras concordam imediatamente, e me faz suspeitar de algum plano oculto. Mas só pra ver o que vai acontecer, concordo com o pedido. Assim que chegamos, as três perguntam ao mesmo tempo pelo professor Lucian, e só então percebi a intenção. E fiquei ainda mais mortificado quando as meninas o convidam pra nos acompanhar durante as compras. Ele pareceu surpreso, mas disse que também precisaria comprar alguns itens pro início do novo ano, então não seria um problema. E eu não posso negar que foi divertido. E agora temos tudo o que será preciso pro início do próximo ano letivo. Almoçamos com Zuleica, e foi divertido ver ela tentando convencer o jovem a ir tomar sorvete com a sobrinha de uma amiga que estava na cidade. Por fim senti pena do rapaz, e disse que ele já havia concordado em me ajudar com a horta que estou preparando, então estaria ocupado essa tarde. Quase sorri com o olhar de gratidão que recebi, e as meninas ficaram eufóricas com a notícia de que iríamos reformar a horta. Quando saímos da casa da minha amiga, além de uma cesta de comida, levamos também um rapaz que parecia constrangido, e uma idéia (recém formada na minha cabeça) de uma reforma na horta. Queria saber por qual motivo eu tinha que inventar uma desculpa tão difícil de cumprir.

Era uma vez: um quase conto de FadasWhere stories live. Discover now