CAPÍTULO 12

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LUCIAN

Meu irmão quase precisou me arrastar pra ir embora. Mas eu senti tanta falta das meninas, que queria poder ficar com elas por mais um tempo. Marcos pode ser um completo idiota algumas vezes, mas quando eu quero que ele esqueça algo, é claro que ele incorpora um "Sherlock" que vai tentar a todo custo me arrancar a verdade. E ele parece particularmente interessado em saber o motivo de eu ter um homem adulto, hétero, pai de três crianças e muito másculo ajoelhado me pedindo desculpas. Não queria contar pra ele, mas ele me encheu tanto a paciência que acabei dando um resumo básico do que aconteceu no último ano, incluindo o beijo. Pra minha completa surpresa, ao invés de me zoar e me atormentar, ele me olhou sério e perguntou:

- E como você se sente com relação a isso? Por que você não parecia muito bem lá na sala. Ficou abrindo e fechando a boca igual um peixe engasgando fora d'água. Acha que tem algum sentimento envolvido?

- Acho que não. Ele está perdido com a morte da esposa, e carente de cuidados. Quando eu me disponibilizei a ajudar com as meninas, ele pode ter ficado sensibilizado e confundiu as coisas. Não me aproximei deles com essa intenção, só quero ajudar, e não complicar as coisas ainda mais.

- E você perguntou o que ele quer?

- Não acho que ele saiba o que quer por enquanto. E eu não vou aproveitar esse momento de fragilidade pra me aproximar. Tudo o que eu quero é cuidar delas. Eu as amo. Não nego que eu sinto uma certa atração por ele desde algum tempo atrás, quando ajudei na reforma da horta. Mas isso não quer dizer nada. Só que eu estou sozinho já tem um tempo, e... E... O que foi que você está me olhando com essa cara de palerma? Olha pra estrada, caralho. Não tô pensando em morrer agora que voltei pra casa. E pode parar com essas malditas risadinhas. O que você é? Uma adolescente no colegial?

Como eu disse, meu irmão pode ser um idiota quando quer. Mas na maior parte do tempo, ele é meu apoio, meu melhor amigo e meu irmão mais velho. E como irmão mais velho, ele dá uns conselhos legais. Então tenho que admitir que não estava esperando por algo tão esdrúxulo, e fui pego desprevenido quando ele disse:

- E por que você não tenta? Está na sua cara a oportunidade que você procurou por tanto tempo. A família que você sempre quis está quase completa. Só falta você.

- Qual parte de "eu não vou me aproveitar da fragilidade deles" você não entendeu?

- Não é se aproveitar. É construir. Ajuda ele a se reerguer, enquanto se inclui no processo. Você é uma pessoa incrível, maninho. Não tem porquê acreditar nas coisas estúpidas que nossos pais disseram pra você.

- Ele é HÉTERO. Ficou viúvo depois de ter sido casado por vinte anos, e tem três filhas. E é por elas que eu engulo qualquer vestígio dos meus desejos egoístas todos os dias. É pra ficar perto delas que eu não quero que as pessoas saibam que eu sou gay. Porque se souberem, e eu continuar perto delas, de imediato as pessoas vão começar a falar. E eu não quero colocar eles em uma situação desagradável.

Enquanto falava, não percebi que comecei a gritar e chorar. Não vi quando Marcos encostou o carro e me abraçou. E então deixei sair as frustrações que eu senti desde que percebi que não era só das meninas que eu queria cuidar. Que eu queria fazer elas felizes, mas que também queria fazer ele voltar a sorrir. E queria estar presente quando isso acontecesse. Quero estar com eles em aniversários, natais, festas juninas, viradas de ano e em dias comuns. Quero ajudar nos almoços de família que dona Rosália faz. Mas não posso me arriscar. Porque se eu me arriscar, vou perder elas também. E eu não acho que suportaria mais esse golpe. Então estou disposto a esperar que ele encontre alguém que vá cuidar delas por mim. A pessoa que vai fazer as coisas que eu queria fazer. Que vai ser o motivo pra eles comemorarem. Mas não posso ser essa pessoa, porque eu sou um homem, não uma moça delicada. Tenho certeza que qualquer mulher gostaria de ocupar esse lugar na vida deles. Talvez quando superar o luto, ele vá chamar Estela pra sair. Ela é bem mais jovem, mas é amiga das meninas. E eu estou me preparando pra quando isso acontecer. Porque eu tenho medo de arriscar um movimento. Prefiro essa meia vida, esse meio sonho realizado, do que sonho nenhum. Do que não experimentar nunca o calor de uma família.

Meu irmão me apoiou enquanto eu chorei e resmunguei por mais de meia hora. Por fim, me empurrou e disse irritado:

- Quando foi que você virou um covarde? Essa parte da sua personalidade eu ainda não conhecia.

Isso me trouxe de volta pros meus sentidos mais rápido do que se tivesse continuado me consolando. Lembrei que dona Zuleica deve ter uma janta maravilhosa esperando, pedi pra ele ligar o carro e voltamos.

Quando chegamos, senti um arrepio na espinha. A filha do pastor estava sentada na sala. Tenho que admitir que ela é persistente. Tem uns seis meses que eu venho fugindo dela, mas ela não parece dar sinais de cansaço. Nem me lembro o nome dela. Sheila, ou alguma coisa próxima? Cássia, Queila... Quézia. O nome dela é Quézia. Dona Zuleica fez um jantar com cara de comemoração pra receber Marcos e eu, e ele parece ter percebido o motivo de eu me sentir tão em casa aqui. Depois que terminamos, conversamos mais um pouco antes de ser um horário aceitável pra dormir, até a bendita moça ir embora pra casa. Enquanto via os avanços incansáveis dela, meu magnífico irmão apenas olhava debochado. Por fim, desisti e me despedi pra ir pro meu quarto. Quando estava quase dormindo, senti sede e desci pra beber água. Ainda era bem cedo, e eu estava sentindo só o cansaço da viagem. Encontrei dona Zuleica na sala, bordando um tecido imenso com linhas coloridas. Bebi a água e quando estava voltando pro quarto, ela me chamou pra conversar.

- Meu filho, você não tá gostando da Quézia vir aqui te ver, néh?

- Não senhora.

- Você gosta de outro tipo de moça? Porque aqui na região o que não falta é moça bonita que tá de olho em você. Só escolher.

- Não é esse o caso.

- Já tem quase um ano que você mora aqui, e eu nunca te vi com alguém. Não é bom ficar sozinho. Posso ser intrometida, e talvez você fique irritado comigo por estar me metendo na sua vida. Mas eu me preocupo com você. Eu não tive filhos, então vocês são minha família. Eu quer que vocês estejam bem.

Resolvi usar uma reserva de coragem que eu pensei que já tinha esgotado há muito tempo. Pisei com os dois pés e me apoiei pro baque. Então, baixinho, disse pra ela as palavras que eu sabia que iriam mudar minha vida de novo:

- Eu sou gay.

Ela me olhou surpresa, e fez uma cara de raiva que me apavorou. E eu comecei a pensar que teria que me mudar. Já estava imaginando os gritos e as recriminações que viriam a seguir. E quando estava quase chorando de tristeza, decepção e medo de ter que começar tudo de novo, percebi que o nome chamado não era o meu. Ela estava no pé da escada gritando a plenos pulmões enquanto pegava a bolsa.

Era uma vez: um quase conto de FadasWhere stories live. Discover now