Capítulo 8

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Vicente insistiu em me levar até em casa, e caminhamos em um silêncio contemplativo por toda a distância de volta

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Vicente insistiu em me levar até em casa, e caminhamos em um silêncio contemplativo por toda a distância de volta. O sol caía, fazendo o mundo brilhar em dourado e cobre, aquecendo minha pele e minha respiração.  Ele me deixou na porta e me concedeu outro daquele repuxar de lábios que agora colecionávamos em Cristo, e dessa vez entreguei-os em dobro, o dele e aquele que eu mordi a bochecha para conter, mas libertei assim que cruzei o batente e me escorei na porta.

Na manhã do dia seguinte, ele estava lá.

Estaquei na entrada de casa assim que o vi estacionado em frente ao quintal, com toda sua postura relaxada e consciente de si. Quando perguntei o que ele estava fazendo ali, Vicente respondeu apenas:

— Gosto da sua companhia. E gosto de ouvir seus pensamentos.

E então me fez entrar no carro.

Ele voltou no dia seguinte.

E no outro.

E no outro.

E em todos os outros depois desse.

Vicente me arrancou minha vida toda de mim, em detalhes, apenas iniciando uma pergunta. Ele nunca deixava de prestar atenção, o que me deixou confortável para falar também. Aos poucos, fui arrancando partículas dele também.

— Pergunta.

Voltei os olhos para ele indicando que falasse.

— Você nasceu aqui no Rio?

— Sim. — assenti.

— Então por que não conhece nada da cidade?

Ergui as sobrancelhas, espantada pela pergunta. Nunca disse a ele que não conhecia os lugares por onde passamos na dia em que ele me levou ao Arquivo.

— Eu observo muito. — ele adicionou, reparando minha pergunta implícita.

— Eu sou do Rio, mas não cresci na capital. Quando eu era bem pequeno, meu avô adoeceu, e nos mudamos para a cidadezinha onde ele e minha avó moram, perto da fronteira com Minas,  para cuidarmos dele. Ele melhorou logo, mas acabamos nos estabilizando lá. Voltamos para a capital tem pouco tempo, por causa da minha faculdade.

Ele assentiu, tanto em entendimento quanto para mostrar que estava ouvindo.

— É por isso que você não puxa tanto o “x", então.

Dei risada.

— Você realmente observa muito.

Vicente desviou o rosto, sem graça. A cena foi tão inesperada que não consegui me conter e fotografei-o. Era atípico vê-lo com qualquer tipo de coisa que não fosse seu sorriso pleno no rosto. Um sorriso envergonhado era algo a se registrar.

— Você também é daqui, certo? — perguntei, para deixá-lo mais confortável.

— Certo. Mas meus avós tem uma pousada em Arraial do Cabo. Eu passei muito tempo entre lá e cá. As memórias mais fortes que eu tenho da infância são de lá, com todos nós na praia.

Os olhos dele brilharam quando mencionou a família, da mesma forma que fizeram quando me contou sobre o irmão. O amor dele transbordou pelas palavras.

— Nunca fui à praia.

Vicente virou-se rapidamente para mim. Empurrei  o ombro dele para que voltasse seu olhos para a estrada.

— Nunca? — ele indagou.

— Não tem mar no interior.

— E quando você voltou?

— Ah. — perdi um pouco da leveza da conversa — O período de mudança coincidiu com o aparecimento da Síndrome. Lugares barulhentos passaram a me incomodar muito, então...

Observei Vicente morder o interior da bochecha, o olhar um pouco distante, como se estivesse discutindo algo consigo mesmo.

— Você tem vontade? De escutar o mar pessoalmente uma vez?

Suspirei.

— Eu tenho muitas vontades, Vicente.

— Isso é um sim?

— Não. Eu ter vontade de ouvir o mar, não quer dizer que eu atrás disso. É só algo bobo.

Tive a impressão de que ele queria mais, dizer mais, contestar, mudar minha mente. Mas já estávamos parados em frente à universidade e tomei isso como o fim da conversa.

Hoje, ele está aqui de novo, recostado na lataria do carro com os braços cruzados, os dedos tamborilando em seu cotovelo enquanto me espera. Vicente não fica completamente parado nunca. A imagem é tão familiar que me sinto parar contra a janela para observá-lo, mordendo o lábio para conter a forma que eles insistem em tomar o tempo todo. A sensação é quente, como a certeza de um dia novo. Ele está aqui de novo, e estou me acostumando a tê-lo bem ali.

Vicente me pega observando-o e sorri. Me afasto rápido do vidro, quase tropeçando no tapete da sala, e abro a porta, afobada e sem graça.

— Bom dia! — ele arrasta as palavras em um tom zombeteiro de quem sabe exatamente  o que eu estou escondendo.

Apertos os olhos, desejando acabar com suas covinhas.

— Nem uma palavra sobre isso!

Vicente abre a porta do carona para mim e dá a volta no carro, obedecendo meu desejo apesar de não conter nem um pingo de sua risada.

Ele sempre me deixa escolher a música, desde de a primeira vez, e passeio pelas estações de rádio até encontrar algo que eu goste e para o qual ele não faça careta. Uma música antiga soa pelos alto-falantes e parece que chegamos a um consenso, já que ele batuca os dedos na batida da canção e até cantarola um pouco do refrão. Vicente me assiste cantar quando acha que não estou olhando, mas percebo todas as vezes. E não sinto vergonha.

A música termina e um anúncio começa. Mexo nos botões e abaixo o volume até que as propagandas acabem, mas percebo que não conheço a música que inicia e deixo como está.

Vicente solta um som de descontentamento ao meu lado e me viro para olhá-lo.

— Esqueci um papéis importantes em casa. Preciso entregar isso hoje. — ele suspira, hesitando — Você se incomoda se passarmos na minha  casa? Vai ser  rápido, prometo.

Nego com a cabeça.

— É claro que não. Por mim, tudo bem!

Ele assente e faz um desvio. Para a casa dele.

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