Capítulo 22

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Há uma inundação de afeto por todos os cantos quando nos juntamos ao resto da família, a começar por Pietro, finalmente livre do gesso no braço, descendo as escadas com um carrinho em mãos

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Há uma inundação de afeto por todos os cantos quando nos juntamos ao resto da família, a começar por Pietro, finalmente livre do gesso no braço, descendo as escadas com um carrinho em mãos. Ele grita e pula no meu colo assim que nos vê, sorrindo largo. Vicente olha para o irmão mais suavemente agora, quando não há aquela lembrança terrível restringindo seus movimentos.

Eu ainda seguro o caçula no colo quando um casal mais velho nos cerca, felicidade brilhando em seus rostos. A mulher aperta Vicente em seus braços robustos, sorrindo caloroso, e aperta suas bochechas antes de se afastar levemente.

— Você não vai me apresentar à moça bonita? — ela pergunta.

Coro discretamente, sem saber o que fazer com o elogio.

Nonna, esta é a Luísa. — ele segura em minha mão e me puxa para frente — Luísa, estes são Mariela e Giuseppe Della Fontana, meus avós.

O homem, Giuseppe, entrelaça o braço da esposa e esboça uma reverência para mim. Riso repuxa meus lábios.

— É um prazer. — respondo.

Ele volta sua atenção para o neto, seus olhos brilhando com orgulho paternal quando o encara, e o cumprimenta com fortes tapas nos ombros. Mariela, no entanto, segue para mim.

Ela me abraça, mesmo que desajeitadamente com Pietro entre nós e deixa um beijo em minha bochecha. Me sinto imediatamente acolhida.

— Seja bem-vinda, nipotina.

Não sei o que a palavra significa, mas parece se encaixar bem.

🎼

Nós nos acomodamos nos quartos pouco antes do almoço, Vicente e Pietro ocupando o cômodo ao lado do meu. E então fizemos bagunça no salão de refeições, puxando mesas e arrastando cadeiras para formar uma única e enorme mesa onde nos sentamos, conversando o tempo todo enquanto comemos lasanha. O falatório é novo, diferente, misturando duas línguas ao longo das frases, um burburinho agitado de felicidade. Sei que não era essa a intenção de Vicente, mas me sinto presenteada com um novo som.

A refeição se estende por quase uma hora, ninguém sentindo vontade de se levantar da mesa. Mas quando alguém o faz, uma nova agitação se inicia em torno de recolher os pratos, fechar panelas, lavar a louça, reorganizar as mesas. Todos estão se mexendo em um ritmo organizado demais para não ter sido ensaiado antes.

— Ei. — Vicente chama, atrás de mim, enquanto termino de enxaguar a última das louças.

Viro-me para ele, enquanto puxo um pano de prato e seco as mãos.

— Oi.

— Vou precisar ir à cidade e Pietro quer vir comigo. Tudo bem se você ficar aqui por hoje? — pergunta.

Concordo, apesar de não me sentir particularmente tentada a ficar sem os dois durante esse tempo.

Vicente desvia meu olhar de volta para o dele.

— Eu não esqueci da minha promessa. — ele diz — Vou fazer tudo o que você quiser fazer. Juramento de dedinho e tudo o mais.

Ele ergue o mindinho e o entrelaço-o com o meu, olhando-o fundo.

— Você cometeu o pior erro da sua vida com essa promessa. — brinco.

Ele dá risada.

— Sei exatamente o que estou fazendo.

🎼


Estou com um livro na mão, encolhida em um dos imensamente confortáveis sofás da recepção, mas minha concentração está cheia de brechas e já me distraí desde com o vento balançando as plantas na mesinha ao lado até os desenhos do sol contra as cores em tons de bege da parede e os coloridos dos objetos de decoração.

Vicente e Pietro já saíram há um bom tempo e, apesar de nunca ficar completamente silencioso por aqui, sinto falta do barulho deles.

Nipotina. — Mariela chama, entrando no cômodo, seus grossos cabelos balançando conforme ela anda.

De novo, aquela palavra. A pergunta paira na minha língua, mas seguro-a aí, em parte temendo a resposta.

— Está ocupada? — pergunta, afável.
Ela tem um jeito de expressar sua força com doçura que me deixa meio admirada e com vontade de ver de mais perto.

— Nem tanto. — digo, fechando o livro.

— Você sabe fazer pão?

Nego com a cabeça. Os olhos dela se iluminam. Aparentemente, resposta certa.

— Você vai aprender bem agora, comigo. — Ela diz tão animada que me faz rir — Vamos, vamos!

Sigo-a, puxada pela mão até a cozinha.

Percebo que aquele espaço é o dela, onde se sente mais à vontade. Seus passos são mais precisos e mais leves naquele ambiente.

Mariela começa me ensinando onde está cada coisa em sua cozinha e não tenho dificuldade em me encontrar. Ela esquenta leite em uma panela enquanto separa os outros ingredientes. Ela canta as medidas e os ingredientes para mim, sem olhar a receita, conforme vai precisando deles. Observo seus movimentos precisos misturando-os. Curiosidade assoma-se em minha mente.

— Posso fazer uma pergunta pessoal? — O questionamento me escapa. Depois que pergunto, me sinto levemente envergonhada por escavar sua privacidade.

Mariela, no entanto, sorri, totalmente confortável.

— Claro, amore. Pergunte o que quiser.

Sem outra saída, pergunto.

— Vocês todos nasceram na Itália?

— Giuseppe e eu, sim. Giuliana chegou nessa terras dentro da minha barriga. Passamos meses em um navio para chegar aqui.

Estou impressionada e meus olhos devem ter me traído, porque  ela dá risada e acrescenta:

— Parece uma insanidade, não é? Mas foi a melhor insanidade que já fizemos na vida.

Sorrio.

— Como vocês vieram parar aqui?

— A história é um pouco longa. — Ela dá risada como um sininho — Minha família não era tão grande assim. A única pessoa que eu tinha, além do meu marido, era minha irmã, Nina. Mas ela nunca gostou de ficar parada. Rodou o mundo, só com a coragem e uma mochila amarela nas costas. Até parar no Brasil. Aqui os ventos mudaram pra ela. A Nina casou, construiu uma família, se estabeleceu. Ela aqui e eu na Itália.

Ela sova a massa enquanto fala, nunca perdendo o fio da meada em nenhuma das coisas.

— Mas então o Giuseppe foi demitido do emprego e eu não trabalhava na época. A situação ficou apertada e nós estávamos sozinhos. Éramos nós por nós, mas sentíamos saudades de ter mais gente ao redor, de ter esse amparo familiar. Foi aí que começamos a cogitar o Brasil. Nós éramos jovens, se tudo desse errado, era só mais uma aventura para a conta. — ela pausa, assumindo um ar diferente, mais reflexivo — É engraçado o que a gente está disposto a fazer quando temos pouca idade, muito pouco medo e amor sobrando. Nós queríamos nos enfiar no primeiro navio que aparecesse e desbravar os mares!

Nós damos risada juntas e Mariela divide a massa em duas, um pedaço para mim e um para ela, me mostrando como abri-la e depois dividi-la em pedaços triangulares.

— Estávamos praticamente de malas prontas quando descobri a gravidez. E então o cenário mudou. Tínhamos muita coisa em jogo agora. Estava cada vez mais difícil na Itália, mas nós já não sabíamos se queríamos realmente arriscar. De repente, todos os aspectos negativos e perigosos de mudar de país, aqueles que nós tínhamos ignorado com a euforia, foram expostos. Nós não sabíamos falar português. Atravessar o Atlântico seria um perrengue, ainda mais com uma criança na barriga.

— E como vocês decidiram realmente vir pra cá?

Toda a sua expressão suaviza.

— Nós oramos muito. E então fizemos o que Deus preferia.

Um suspiro me escapa por entre os lábios.

— Como tiveram fé pra isso? — Minha pergunta é baixa.

— Na verdade, nipotina, a questão sobre a fé é que você não pode fazê-la crescer até que reconheça que não a tem.

Encaro-a sem entender direito o que ela quer dizer com as palavras.  Mariela segura minhas mãos sujas de massa e trigo, aperta e solta.

— Se eu nunca tivesse me ajoelhado diante de Jesus e admitido ser um incrédula, implorando para me tornar uma verdadeira crente, nós duas teríamos morrido no meio do caminho: eu e a minha fé.

Seus olhos brilham com lágrimas contidas, mas ela aponta para o trabalho não terminado sobre a mesa.

— Agora vamos terminar esses cornettos. Chega de papo!


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