Capítulo 34

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Eu passo os próximos dias me dedicando a conhecer meu Deus

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Eu passo os próximos dias me dedicando a conhecer meu Deus. Se naqueles dias fatídicos meu quarto parecia uma cela, agora é um refúgio, um lugar que construímos para nós dois.

Em toda a minha vida, nunca estive tão em paz.

Não é sempre fácil. O silêncio ainda me corrói às vezes. A cura é um processo lento e delicado, ele me diz em todas elas, você está no caminho certo. 

Acredito em suas palavras.

Há desenhos espalhados pelo lugar inteiro agora, frases rabiscadas em cadernos velhos, cores preenchendo páginas e mais páginas em minha Bíblia, antes intacta. Eu cheguei a pintar algumas formas em uma parede. A cor canta para mim em cada uma dessas coisas.

Vicente estava certo em argumentar comigo sobre arte. Ele estava certo sobre muitas coisas a meu respeito.

A pilha de exatas sete cartas permanece intocada em frente à porta. Elas pararam de chegar a alguns dias e meu coração quase parou quando notei a ausência de um novo envelope. Meus pensamentos aceleraram vertiginosamente entre mil e uma especulações, principalmente tomadas por: ele desistiu? Ele desistiu, desistiu, desistiu? Ele desistiu de nós dois?

E então, em uma nova espiral: Eu poderia culpá-lo por isso? Eu fiz com que ele desistisse.

Minhas ideias continuariam descendo por lugares cada vez mais escuros, se meu Pai não me interrompesse, com o que foi praticamente um peteleco na testa.

Calma! , ele exigiu.

— Tá bom! — Eu acatei, apesar de que aquela sementinha foi mantida comigo.

Encaro tanto os papéis no chão que mal sinto me mexer em direção a eles, subitamente e hipnoticamente atraída por eles.

Encaro e encaro e encaro e meus dedos coçam para pegá-los e estou quase agarrando-os quando pulo para trás, a mera ideia de me render às palavras de Vicente me dando um choque que percorre todo meu corpo.

Em um impulso, ergo-me e abro a porta com força.

Estou fora do quarto pela primeira vez em dias, e cruzando o corredor, passos hesitantes como se cuidadosos em passar num teste. 

Eu entro no cômodo repleto de instrumentos e um pouco de poeira sobe. Contra a luz, lembra um pouco pozinho mágico, e um gosto de infância sobe à minha boca. Foi ali que tudo começou. Não o lugar em si, mas a música. Eu não toquei nada desde que a surdez me consumiu. É como se tivesse rompido com a música. Deixou algo vago em mim.

Olho as várias superfícies de silhuetas variadas, madeira desgastada, cordas cuidadosamente afinadas, teclas apenas um pouco empoeiradas, e me sinto uma intrusa no lugar que sempre me foi familiar. Uma estranha em meu lar.

Idolatria, eu me lembro. Eu fui responsável por arruinar aquela partícula linda do meu ser. Eu fui responsável pela ruptura, pela quebra que agora doía ardentemente.

Me limito a observar, como se aquela parte enorme da minha vida fosse apenas obras de arte em exposição. Algo a ser apreciado, e depois esquecido.

Mas a voz dele me cutuca, interrompendo minha atmosfera melancólica:

Você devia tentar tocar.

Nego com a cabeça, o movimento meio aéreo.

— Não, não devia.

Aquilo nos afastou uma vez. Não havia possibilidade de eu arriscar tudo novamente, mesmo que meu corpo inteiro formigasse para retomar o contanto e meu coração ardesse por emitir melodia.

Como se lesse todos os meus medos, e de fato fazendo-o, ele emite uma ordem, tão carinhosa que parece uma sugestão:

Traga-a de volta. Traga a música de volta para mim, assim como eu trouxe você de volta.

Eu ofego, meu coração batendo tão forte que dita um compasso em meu peito, um metrônomo para minha respiração. Solto o ar devagar por entre os lábios. É uma ordem direta do meu Pai, e não posso pensar em negá-la.

Deito no chão lentamente, sentindo o frio penetrar em minha pele.

Começo a cantar.

Não tenho um tom

Não tenho palavras

Não tenho um acorde que me socorra agora

Tudo foi embora

Só tenho você

É tudo o que sinto vontade de dizer para o meu Deus. É libertação e segurança e certeza de ser ouvida. É confusão e perdão, louvor e felicidade. É estar a um passo do céu novamente. É o lento e constante curar de uma ferida aberta a muito, muito tempo. Tempo demais. Tempo suficiente.

Havia o silêncio que mostrou meus vícios

Me agarro contigo, vem

Me socorra agora

Tudo foi embora

Só tenho você, Amor, agora

E essa não é mais uma canção de amor

Não, não, não, não, não

Eu choro e sorrio ao mesmo tempo, submersa em graça, quando meus pulmões inflam para cantar com cada gota de sinceridade que há em mim, completamente desnuda na presença dele.

Canto pra ti

Sei onde estou

Olhando pra mim posso saber que nada sou

Eu grito pra ti

Oh, Deus, vem me socorrer

Olhando pra mim posso saber que nada posso fazer.

A música vibra ao meu redor, alterando cores, ganhando espaço. Posso ouvi-la, em cada batida do meu coração, posso ouvi-la. Porque sei que aquele que realmente me importa que ouça está ouvindo.

A música nunca foi pra mim.

Sempre foi pra ele.

Nesse momento, não me importo nem um pouco com o silêncio, desde que ele continue me ouvindo.

Último Som Where stories live. Discover now