Capítulo 32

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Me reviro na cama por horas, minha mente e meu corpo totalmente alertas, recusando-se a descansar

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Me reviro na cama por horas, minha mente e meu corpo totalmente alertas, recusando-se a descansar.

É insuportável.

A cada vez que fecho os olhos e eles negam-se a permanecer assim, minha atenção relanceia para as cartas empilhadas em frente à porta e meu coração dói.

A vibração se espalha dela pelo meu quarto várias vezes por dia, me fazendo reconhecer a presença dos meus pais por trás da madeira. Eles têm tentado com afinco me desenterrar de mim, mas não consigo fazer isso, então simplesmente espero que cansem. O papel passando por debaixo da porta é o sinal de que preciso para saber que posso parar de engolir o nó na garganta que o cuidado deles me causa.

Uma carta chega a cada dia. Não li nenhuma sequer.

Sei  exatamente de quem vieram e também sei o que vai acontecer comigo se eu ousar abri-las.

Sem conseguir mais aliar a escuridão e o silêncio, sento-me e acendo a luminária na beira da cama, desvencilhando-me das cobertas.

Agarro minha Bíblia e bato a gaveta.

— Eu não consigo aguentar mais o silêncio. — sussurro no escuro — Fale alguma coisa. Por favor.

Um arrepio desce pela minha coluna, como uma carícia de incentivo.

Passo as páginas até chegar ao capítulo que li mais cedo, mas dessa vez, começo pelo versículo um:


¹ Eu sou aquele que viu as aflições trazidas pela vara da ira do Senhor.

²Ele me conduziu para a escuridão e removeu toda a luz.

³ Voltou a sua mão contra mim repetidamente, o dia todo.

⁴ Fez a minha pele e minha carne envelhecerem e me quebrou os ossos.

⁵ Sitiou-me e cercou-me de angústia e aflição.

⁶ Enterrou-me num lugar escuro, como os que há muito morreram.

⁷ Cercou-me de muros, e não consigo escapar; prendeu-me com pesadas correntes.

⁸ E, ainda que eu clame e grite, ele fechou os ouvidos para minha oração.

⁹ Como um muro de pedra, impediu meu caminho; tornou minha estrada tortuosa.

¹⁰ Escondeu-se como um urso ou um leão que espera para atacar.

¹¹ Arrastou-me para fora do caminho e despedaçou-me; deixou-me devastado.

¹² Preparou seu arco e me fez alvo de suas flechas.

¹³ As flechas que ele atirou entraram fundo em meu coração.

¹⁴ Meu povo ri de mim, o dia inteiro entoam canções de zombaria.

¹⁵ De amargura ele me encheu e me fez beber um amargo cálice de dor.

¹⁶ Fez-me comer pedrinhas até quebrar os dentes e cobriu-me de pó.

¹⁷ Tirou-me a paz, e já não sei o que é prosperar.

¹⁸ Grito: “Meu esplendor se foi! Tudo o que eu esperava do Senhor se perdeu!”

¹⁹ Como é amargo recordar meu sofrimento e meu desamparo!

²⁰ Lembro-me sempre destes dias terríveis enquanto lamento minha perda.


Choro, e não sei bem quando comecei, mas os soluços sacodem meu corpo e lágrimas pingam nas páginas, enrugando-as. É como ouvir minha própria alma gritar, todo seu desespero posto em palavras. Engulo em seco, meu coração acelerado no peito e limpo o rosto para continuar. O texto agora muda de rumo com o versículo vinte e um:


²¹ Ainda ouso, porém, ter esperança quando me recordo disto:


Imediatamente, a voz retorna, não mais ecoando em minha cabeça, mas como se fosse sussurrada em meu ouvido. Eu posso ouvir.

Ouça, ouça, ouça, ouça, ouça, ouça, ouça.

Preste atenção, preste atenção, preste atenção, preste atenção, preste atenção, preste atenção, preste atenção.

Recomeço a ler, concentrando-me nisso e desligando-me de toda dor ou interferência.


²¹ Ainda ouso, porém, ter esperança quando me recordo disto:

²² O amor do Senhor não tem fim! Suas misericórdias são inesgotáveis.

²³ Grande é a sua fidelidade; suas misericórdias se renovam cada manhã.

²⁴ Digo a mim mesmo: “O Senhor é minha porção; por isso esperarei nele!”

²⁵ O Senhor é bom para os que dependem dele, para os que o buscam.

²⁶ Portanto, é bom esperar em silêncio pela salvação  do Senhor.


Algo em meu peito começa a corroer e é como ser sufocada. Penso em parar de ler. Penso em jogar a Bíblia de volta na gaveta e nunca mais pegá-la. Penso em tudo isso, mas estou presa aqui e, agora que experimentei a dor das palavras pressionando as feridas, preciso ir até o fim. Há um puxão no meu peito me impulsionando a ir mais fundo.


²⁷ É bom as pessoas se sujeitarem, ainda jovens, ao jugo de sua disciplina.

²⁸ Que permaneçam sozinhas e em silêncio sob o jugo do Senhor.


Estremeço. Sozinha e em silêncio, exatamente como estou agora. E com certeza debaixo do jugo do Senhor.


²⁹ Que se deitem com o rosto no pó, pois talvez ainda haja esperança.


Não há.
Eu já fiz isso antes.


³⁰ Que deem a outra face para os que os ferem e aceitem os insultos de seus inimigos

³¹ Pois o Senhor não abandona ninguém para sempre.

³² Embora traga tristeza, também mostra compaixão, por causa da grandeza do seu amor

³³ Pois não tem prazer em afligir as pessoas, nem em lhes causar tristeza.
Fecho o livro com um baque, meu coração preso na garganta e o barulho nos pensamentos ameaçando me consumir.


— Por quê? Se você não tem prazer nisso, se não fica feliz em ver minha dor, então por quê? Que pecado eu cometi para justificar isso?

Me consolo com a ideia de que não vou receber resposta. Acalmo meu corpo ao pensar que é isso. Essa foi toda a dose de loucura resultante dos últimos dias e agora acabou. Chega.

Mas de novo, aquele sussurro encosta-se em meu ouvido e eu o escuto, agora soando terrivelmente como uma tempestade. Trovões e muitas águas revoltas me dizendo:

Você esqueceu.

— De que? De que eu esqueci?

Novamente ela vem, em uma resposta que me faz estagnar:

De mim.

Então o silêncio me devora com tanta força que desfaço.

Último Som Where stories live. Discover now