Capítulo 24

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Meus ouvidos chiam com o barulho, e balanço a cabeça para amenizá-lo

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Meus ouvidos chiam com o barulho, e balanço a cabeça para amenizá-lo. O burburinho da conversa misturado à música e às risadas é bom de se ouvir. Precisar fazer isso com um zumbido ocasional é um preço a se pagar.

O pátio da pousada foi recoberto por um céu de pisca-piscas e ocasionais lâmpadas maiores que se penduram mais perto de nossas cabeças, ao alcance do toque de qualquer um que seja alguns centímetros mais alto que a média. As luzes se destacam contra o céu noturno e criam uma atmosfera diferente combinada com o calor e a brisa salgada de mar que nos atinge constantemente.

Meu vestido roça levemente em minhas pernas e esvoaça enquanto atravesso a multidão de cabeças.

É quase uma festa típica, Vicente me explicou mais cedo. Seus avós fazem a mesma festa todo ano, e o costume se tornou tão forte que agora a cidade inteira tem conhecimento e participa dela. Acabou se tornando um mini festival e as pessoas vêm pela música e pela comida.

Volto minha cabeça ao som de risadas agudas.

Há muitas crianças aqui hoje, como era de se esperar. Aparentemente, Vicente se tornou o tio favorito de todas elas.

Ele corre atrás delas, enquanto soltam gritos empolgados e riem e não posso impedir que um sorriso se contorne em meus lábios. Ele leva jeito pra isso.

Brinco com o pequeno cordão em meu pescoço enquanto o observo.

Como se sentindo o meu olhar sobre si, ele se vira.

As covinhas se pronunciam instantaneamente.

Com um floreio, ele alcança uma das crianças, transferindo o pique, e caminha em minha direção.

Suas bochechas estão coradas, tanto pela brincadeira quanto pelo sol tomado na praia, assim como a minhas. Apesar da respiração regulada, suor começa a grudar os fios, agora pouco mais compridos, em sua nuca. Vicente passa a mão pelos cabelos e sorrio, lembrando que acertei sua mania assim que nos conhecemos.

Ele se recosta ao meu lado e olha para cima, para o túnel de luzes cintilantes, com aquele ar de criança.

— Quando eu era mais novo, tinha certeza que eram estrelas. — ele dá risada, enrugando o nariz quando o faz — Eu achava que o nonno colecionava estrelas cadentes o ano inteiro, apenas para pendurá-las aqui para minha avó.

Rio suave. É extremamente fofo imaginá-lo pequeno, olhando para as luzes como se fossem pedacinhos de galáxias.

— Acho que as constelações estariam um pouco desfalcadas. — comento.

— Concordo. — ele balança a cabeça — Mas naquela época, minha tese parecia verídica. Eu amava o dia da festa. Me fazia sentir um astronauta.

Ainda agora, Vicente parece especialmente encantado por esse pedacinho específico de sua vida.

— Pergunta.

Ele ri.

— Tinha tempo que não fazíamos isso. Diga.

— O quê significa aquela palavra que Mariela usa para me chamar? Nipotina?

Vicente pigarreia, e o rubor em seu rosto já não parece tão natural assim.

— Vicente?

—Significa neta. — ele tosse, e depois passa as mãos pelo cabelo de novo — Netinha, pra ser exato.

Eu teria ficado tímida, se ele já não estivesse. Ver Vicente envergonhado é uma das minhas coisas favoritas no mundo.

— Eu posso pedir para ela parar, se você não se sente bem com o apelido.
Nego com a cabeça.

— Eu gosto. — afirmo
Vicente aperta os lábios um contra o outro e sinto vontade de tocá-los para que ele os solte.

A música muda, iniciando acordes de uma melodia que já conheço. Ele relanceia um olhar para as caixas de som e sorri.

— Dance comigo.

Abro bem meus olhos.

— Por favor. — ele não espera que eu negue — Essa música — ele aponta envolta — está nos perseguindo.

Ele tem razão. É a mesma música que cantamos no carro, com os olhos dele presos no meu e o rádio oscilando vez ou outra.

Seguro sua mão quando ele a estende para mim e nos carrega para o meio do pátio. Não consigo ver se somos os únicos dançando, concentrada demais na sensação dele me segurando para em importar com isso. Suas mãos seguram firme em minha cintura e as minha envolvem seu pescoço.
Vicente me envolve. De todas as formas, ele me envolve.

E nós não somos bons nisso.

Não fazemos mais do que balançar de um lado para o outro e um ocasional giro, mas não há valsa bem coreografada no mundo que substitua o sentimento desses minutos.

Até o zumbido em meus ouvidos parece suprimido.

🎼

Não é uma boa ideia entornar três copos cheios de suco de melancia quando você está no meio da multidão e só tem um banheiro. Deixo isso anotado para minha eu-do-futuro.

A fila que se forma em frente ao banheiro da recepção é gigantesca, assim como a quantidade de líquido em minha bexiga.

Contendo um resmungo, faço meu caminho de volta para o pátio, procurando Vicente entre as pessoas.
Ele foi reivindicado pelas crianças assim que nossa dança acabou, e agora preciso muito da chave do quarto que entreguei a ele assim que descemos, devido à minha falta de bolsos.

Ele se camufla inacreditavelmente bem e estou quase desistindo de procurá-lo e me rendendo à fila interminável quando o encontro, caminhando junto com o irmão e segurando um prato de doce que eu não tenho certeza se é mesmo para Pietro.

Caminho a passos largos e rápidos em sua direção, e ele faz o mesmo quando me vê.

— Ei, onde se meteu? Estava te procurando.

— Eu também. — concordo — preciso da chave do quarto.

— Chave?

— É, a chave do quarto, por favor!

Apresso-o enquanto ele revira os bolsos. O tilintar do chaveiro sendo colocado em minha mão me tranquiliza. Até eu dar uma olhadinha em volta.

— Ah, meu Deus. Eu nunca vou encontrar vocês de novo aqui no meio!

Vicente dá risada.

— Você nunca saiu muito, não é?

— Estou falando sério! Essa multidão vai me engolir.

Ele balança a cabeça.

— Tudo bem, eu te levo até as escadas e espero lá.

Não espero mais nenhum segundo e saio puxando-o para dentro. Vicente me espera na base das escadas como prometido, e subo para o banheiro do quarto. Em cinco minutos, estou descendo de novo, ansiosa para retornar para a música do lado de fora. Meus passos fazem barulho nos degraus enquanto desço correndo.

Mas então o chão gira sob meus pés.

Sinto que não consigo me manter de pé. Meus dedos agarram com força o corrimão no primeiro segundo, a única coisa que impede minha queda. Mãos estão em mim no momento seguinte, me ajudando a sentar nos degraus de madeira.

— Lu. — ele chama, e me inclino ao som de olhos fechados.

Mesmo no escuro, o mundo não para de rodar. A sensação bem conhecida é nauseante.

Concentro-me em respirar até que a tontura abrande. Vicente me toca o tempo todo, tanto um conforto quando um lembrete de sua presença. Apoio a cabeça em seu peito e inspiro. Seus braços me envolvem.

— Consegue levantar? — ele pergunta, sua voz suave — Vamos subir.

O esforço é mais fácil do que há minutos antes. A sensação de movimento constante passou de montanha-russa insana para carrossel. Posso lidar com isso.

Mando Vicente embora assim que sou entregue ao quarto, seu corpo me escorando até a cama. Digo que só vou trocar de roupa e deitar. Digo que agradeço muito sua ajuda. Digo que estou acostumada e posso me virar sozinha.

E ele diz não.

— Posso esperar que você se troque. Depois vou ficar aqui com você.

— Vicente...

— Estou do outro lado da porta. Me avise assim que estiver pronta.

Coloco minha roupa mais confortável rapidamente, temendo que a tontura piore logo, e então me jogo na cama, me sentindo subitamente exausta. Ainda assim, minha consciência me atormenta, me lembrando de Vicente em pé do outro lado da porta esperando por mim. Bufando, dou duas batidinhas no criado mudo, esperando que seja o suficiente ao menos para aliviar meu remorso.

Ele entende o sinal.

Me sento com as costas na cabeceira da cama quando ele entra.

— É uma crise? — Vicente ocupa o lugar ao meu lado, seu joelho tocando o meu.

Assinto.

— Eu só preciso ficar quieta e esperar que passe. É normal.

— Eu sei. Só não quer dizer que você deva estar acostumada.

Não, não quer dizer.

Deus sabe que nunca me acostumei. Mas fingir que sim é mais fácil.

Pulo do colchão quando bile escala minha garganta e despejo tudo no vaso sanitário. Vicente ajoelha atrás de mim, segurando meus cabelos e acariciando minhas costas. Cada espasmo de náusea drena ainda mais energia. Minha cabeça pende pra frente, pesada e leve ao mesmo tempo.

Suor gruda em meu corpo, pegajoso, e estremeço.

O enjoo não passa, nem a tontura. Então continuo ajoelhada nas ladrilhos do banheiro, Vicente erguendo meus cabelos toda vez que preciso vomitar ou que a tontura parece me sufocar, soprando minha nuca de forma calmante.

Em algum momento, a música e a conversa lá fora pararam totalmente. Não percebi quando as luzes se apagaram, mas agora o ambiente parece mais escuro.

Apoio minha testa na porcelana fria, os dedos trêmulos me apoiando à lateral do vaso. Solto o ar pelos lábios, mas isso não ajuda a fazê-los parar.

— Estou cansada, Vicente. Tão cansada...

Meus olhos pesam, a ponto de eu não conseguir mais mantê-los abertos. Meu corpo parece semi-desligado e não consigo mexê-lo mais. Escuto um suspiro próximo ao meu ouvido e em seguida sou erguida e embalada em braços quentes. Alguém me deita em uma cama confortável.

Acho que começo a sonhar.

Algo quente e macio é colocado sobre mim.

Um beijo na testa.

Palavras cantantes ditas sobre minha pele.

— Eu sei, meu amor, eu sei.

Último Som Where stories live. Discover now