"A vida inteira, meu mundo foi feito de sons. Cores se convertiam em notas, formas tornavam-se acordes. E tudo convergia em uma melodia infindável, incomparável. Minha alma.
A música me reivindicou, me tomou pra si, me escolheu. Tudo o que vejo é m...
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Eu acordo cedo demais. A ausência de barulho, panelas batendo ou pés na escada velha e ruidosa me incomoda mais do que a familiar presença de todos os itens acima. Me levanto devagar. Faço a cama devagar. Tomo banho muito, muito devagar. Estar sozinha me dá tempo de sobra.
Ligo para minha mãe e ponho no viva-voz enquanto me visto.
— Ah, lembrou que tem mãe? — é assim que ela atende.
— Você não me deixa esquecer! — provoco, sabendo exatamente qual será sua reação.
— Me respeite, ouviu? Faça bom uso da educação que eu te dei! — ela repreende, mas sei que há um sorriso em sua voz.
— Estou com saudade. — digo.
— Eu também, querida. — o som fica abafado por um instante e imagino que ela esteja cobrindo o microfone com as mãos. — Seu pai está comprando milhares de bugigangas para você.
Sorrio para o celular. Meu pai gostava de me acompanhar por incursões à lojas de antiguidades. A diferença é que eu colecionava objetos com história e ele, qualquer peça sem utilidade que ele pudesse trazer para casa para irritar minha mãe. Aos poucos, virou uma coisa de nós três.
— Diga a ele que eu acho que o jardim está precisando de um toque especial. Talvez uns anões de cerâmica...
— Não ouse repetir isso! Jamais!
Dou risada na linha.
— Eu realmente acho que meu pai compartilharia minha opinião.
— E é por isso que ele não vai ficar sabendo dela. — ela decreta.
— Sim, senhora.
Já pronta, desço as escadas devagar, o celular batendo contra o aparelho auditivo quando pressiono-o entre a orelha e o ombro. Largo a bolsa no sofá e me dirijo para a cozinha.
Continuamos conversando enquanto preparo café preto para mim.
— Como está Thais?
— Trabalhando mais do que eu gostaria. Mas fique tranquila, nada que o terceiro membro do seu complô não aguente.
— Bom saber. Quero minha espiã bem descansada sempre. — minha mãe fica em silêncio por poucos segundos — E Vicente? — pergunta, a voz doce e escorregadia.
— Hm... Bem?
— É só isso que você tem pra me falar?
— Sim?
Ouço seu suspiro abrupto do outro lado.
— Eu devia arranjar outro hobbie. Tentar arrancar informação de você é cansativo demais.
— Mãe!
— O quê foi? Eu te carreguei na barriga, tenho direito de saber como anda sua vida.
Apoio-me no balcão da cozinha, celular em uma mão e xícara de café na outra. O líquido escuro me aquece instantaneamente. Desligo a chamada quando vejo os ponteiros do relógio se arrastarem para mais perto das oito. Vicente deve estar aqui em breve. Me acostumei bem rápido à comodidade de receber suas caronas.
Termino de beber meu café e deixo a xícara vazia sobre o móvel atrás de mim. Tento me desencostar dele mas sou puxada e detida no lugar, meu casaco de linha preso na beirada. Dou um leve puxão e liberto o tecido, mas meu cotovelo esbarra na xícara e a derruba.