Capítulo 17

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Eu acordo cedo demais

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Eu acordo cedo demais. A ausência de barulho, panelas batendo ou pés na escada velha e ruidosa me incomoda mais do que a familiar presença de todos os itens acima. Me levanto devagar. Faço a cama devagar. Tomo banho muito, muito devagar. Estar sozinha me dá tempo de sobra.

Ligo para minha mãe e ponho no viva-voz enquanto me visto.

— Ah, lembrou que tem mãe? — é assim que ela atende.

— Você não me deixa esquecer! — provoco, sabendo exatamente qual será sua reação.

— Me respeite, ouviu? Faça bom uso da educação que eu te dei! — ela repreende, mas sei que há um sorriso em sua voz.

— Estou com saudade. — digo.

— Eu também, querida. — o som fica abafado por um instante e imagino que ela esteja cobrindo o microfone com as mãos. — Seu pai está comprando milhares de bugigangas para você.

Sorrio para o celular. Meu pai gostava de me acompanhar por incursões à lojas de antiguidades. A diferença é que eu colecionava objetos com história e ele, qualquer  peça sem utilidade que ele pudesse trazer para casa para irritar minha mãe. Aos poucos, virou uma coisa de nós três.

— Diga a ele que eu acho que o jardim está precisando de um toque especial. Talvez uns anões de cerâmica...

— Não ouse repetir isso! Jamais!

Dou risada na linha.

— Eu realmente acho que meu pai compartilharia minha opinião.

— E é por isso que ele não vai ficar sabendo dela. — ela decreta.

— Sim, senhora.

Já pronta, desço as escadas devagar, o celular batendo contra o aparelho auditivo quando pressiono-o entre a orelha e o ombro. Largo a bolsa no sofá e me dirijo para a cozinha.

Continuamos conversando enquanto preparo café preto para mim.

— Como está Thais?

— Trabalhando mais do que eu gostaria. Mas fique tranquila, nada que o terceiro membro do seu complô não aguente.

— Bom saber. Quero minha espiã bem descansada sempre. — minha mãe fica em silêncio por poucos segundos — E Vicente? — pergunta, a voz doce e escorregadia.

— Hm... Bem?

— É só isso que você tem pra me falar?

— Sim?

Ouço seu suspiro abrupto do outro lado.

— Eu devia arranjar outro hobbie. Tentar arrancar informação de você é cansativo demais.

— Mãe!

— O quê foi? Eu te carreguei na barriga, tenho direito de saber como anda sua vida.

Apoio-me no balcão da cozinha, celular em uma mão e xícara de café na outra. O líquido escuro me aquece instantaneamente. Desligo a chamada quando vejo os ponteiros do relógio se arrastarem para mais perto das oito. Vicente deve estar aqui em breve. Me acostumei bem rápido à comodidade de receber suas caronas.

Termino de beber meu café e deixo a xícara vazia sobre o móvel atrás de mim. Tento me desencostar dele mas sou puxada e detida no lugar, meu casaco de linha preso na beirada. Dou um leve puxão e liberto o tecido, mas meu cotovelo esbarra na xícara e a derruba.

Vidro cai.

E s t i l h a ç a.

E não ouço nada.


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