Capítulo 19

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Minha cabeça pesa quando abro os olhos, luz difusa se infiltrando pelas cortinas finas

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Minha cabeça pesa quando abro os olhos, luz difusa se infiltrando pelas cortinas finas. Ainda é dia.

De certa forma, parece mais fácil pra mim que anos tenham se passando desde o momento em que adormeci do que apenas umas horas.

Um curativo envolve minha mão direita e não sei como ele foi parar ali. Alguém me trouxe para meu quarto também, teve o esforço de subir as escadas comigo. Mas nem isso consegue fisgar minha atenção. Não há sequer vislumbre de curiosidade, de ânimo para averiguar os acontecimentos.

Fecho os olhos.

Não tire isso de mim, eu peço, mas isso não soa como uma súplica, nem mesmo dentro de minha própria mente, onde eu costumava ditar as regras. Me surpreendo ao reparar uma nota de raiva no fundo das palavras, mas as repito mesmo assim.

Não tire isso de mim.

Se antes minha mente havia me dominado, agora ela parece subitamente e dolorosamente vazia. A única coisa que funciona do jeito habitual é meu corpo, e ele não consegue ficar parado.

Me levanto rápido, sem me importar com a escuridão momentânea que o movimento gera. Cruzo o corredor em um passo, sem hesitar antes de abrir a porta imediatamente em frente à minha.

Em teoria, é um quarto vago. Na realidade, é o abrigo de todos os instrumentos que acumulei ao longo dos anos.

Me dirijo diretamente para um pequeno e extremamente velho piano, um tipo estranho de determinação agitando-se em minhas veias e me impedindo de parar.

Uma frase articula-se dentro do meu cérebro, repetindo-se sem pausa.
Não tire isso de mim. Não tire isso de mim. Não tire isso de mim. Não tire isso de mim. Não tire isso de mim. Não tire isso de mim. Não tire isso de mim. Não tire, não tire, não tire...

É enervante. Minha mãos tremem quando eu as apoio nas teclas marfim. Puxo ar e começo a tocar.

É uma melodia triste, chuvosa, cinza. Mas é a única coisa que flui de mim.

A bandagem cruzada em minha palma atrapalha os movimentos e a arranco, mal dando tempo para que o acorde anterior morra antes que eu retorne à música. O corte repuxa toda vez que meus dedos encontram o piano, criando uma pontada de dor constante que se alastra até as unhas e retorna até o pulso.

Eu não paro.

Não há nada que possa me resgatar disso.

Não tire isso de mim.

Seguro a mesma nota por um instante, todo o meu peso jogado sobre as teclas. Minha respiração tremula. Olhos marejados, coração fraco.

Disse que estaria lá quando eu me sentisse impotente
Se isso é verdade, por que você não me ajuda?

Sussurro a canção, e libertar isso dói.

É minha culpa, eu sei que sou egoísta

Não tire isso de mim, não tire, não...

Pegue minha mão, estou me afogando
Eu sinto meu coração batendo
Por que você não me encontrou ainda?
Eu te abraço com tanto orgulho
Traumas, eles me cercam
Eu queria que você me amasse de volta

Eu canto, minha voz soando rouca, um eco das lágrimas de outrora e um reflexo das de agora. Isso transborda com tanta intensidade que não consigo continuar.

Como cuspir água após um afogamento.

Me sinto drenada.

Minha cabeça desce por sobre o instrumento e puxo ar com força para dentro dos pulmões, desesperada para senti-los encher e esvaziar.

- Então você finalmente se permitiu chorar.

Thais está parada no batente, sua voz suave como brisa e não consigo imaginar um mundo em que eu não possa escutá-la. Choro mais, cada lágrima me deixando ainda mais vazia.

Ela cruza o cômodo a passos rápidos, puxa minha cabeça para seu colo e me deixa jorrar, mãos em meu cabelos, toda a sua presença reconfortante.

Ela continua ali, me segurando forte, até que eu seque. Só então ela pergunta:

- O que aconteceu?

E eu conto, mas é estranho forçar aquelas palavras a deixarem meus lábios. É estranho perceber que elas não estão mais se retorcendo apenas dentro de mim.

- Como... - minha voz vacila e sou obrigada a tentar de novo - Como você chegou aqui?

Ela solta o ar lentamente pelo nariz antes de responder.

- Vicente. Ele estava um pouco nervoso e não sabia pra quem ligar e então ligou pra mim. Modéstia à parte, foi a melhor decisão da vida dele. - ela sorri, mas não há nada de alegre naquele sorriso e quero tanto, tanto que ela dê um sorriso de verdade.

Thais suspira outra vez.

- Que bom que ele estava aqui. Que bom mesmo.

Franzo a testa, me lembrando de algo.

- Como foi que ele entrou? A casa toda estava trancada.

- Quase toda. A janela do seu quarto estava aberta.

- A janela. Do meu quarto. - repito, meio sem acreditar. - No segundo andar.

Minha amiga sopra uma risada.

- Ele subiu pela árvore e pulou de lá para dentro. Da próxima vez, deixe a porta aberta para aquele pobre homem apaixonado.

Balanço a cabeça. Cada detalhe sobre esse dia faz com que ele fique ainda mais insano.

- A propósito, ele ainda está lá embaixo. Talvez vocês devessem...

Faço que não com a cabeça.

- Não posso. Ainda não. Eu preciso organizar as coisas, Tatá.

- Tudo bem. - ela assente, compreensiva.

- Peça para ele voltar para casa. Peça para ele descansar.

Ela se levanta, pronta para enviar meu recado.

- Faça o mesmo. - acrescento para suas costas.

Thais se vira na mesma hora.

- Mas nem morta. - ela retruca, a indignação bem dosada em sua voz.

- Thais, eu preciso ficar um pouco...

- Sozinha, eu sei. Vou te dar toda a privacidade que seu quarto possa oferecer. Fora de lá, você está em meu território. Sei o que está tentando fazer, e não vou deixar.

É tão desafiador, esse olhar em seu rosto. Gostaria de conservá-lo, talvez roubar um pouco dele pra mim.

Mas quando Thais sai da sala e me deixa sozinha, não resta nada em mim pra erguer com aquela ferocidade.

Último Som Where stories live. Discover now