Capítulo 14

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Sinto que poderia passar horas neste lugar, sem ao menos me dar conta do tempo decorrido

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Sinto que poderia passar horas neste lugar, sem ao menos me dar conta do tempo decorrido. A Biblioteca Nacional libera um sentimento de pertencimento em minhas veias assim que ponho os olhos nela. Subimos as escadarias correndo, como se tivéssemos pressa. Mas eu, pelo menos, não tenho. Voltar a observar a sombra de Vicente se mexer ao lado da minha depois dos fatídicos dias de fuga é reconfortante. O saguão de entrada é deslumbrante, mas mal tenho tempo de admirá-lo antes que Vicente me puxe, sem arrefecer o ritmo de seus movimentos. Tenho apenas um vislumbre de luz iridescente infiltrando-se pela claraboia, diversos andares se erguendo ao redor dela.

— Vicente!

Ele olha para trás, surpreso.

— Vá devagar. Eu quero olhar com calma.

Assentindo, ele diminui o passo, caminhando ao meu lado agora.

— Você realmente devia conhecer melhor a cidade em que mora a anos.

— É, eu devia. Estou perdendo coisas demais. — e não é só sobre a cidade que estou falando. Eu sempre perco coisas demais, nas melhores e mais ricas partes da minha vida.

— Agora eu entendo porque você é tão obcecada com Enrolados.

Ergo as sobrancelhas, curiosa, esperando sua explicação, que não demora muito a vir.

— Luísa, você está vivendo trancafiada em um torre desde que chegou aqui!

Dou risada, tanto da frase quando da careta em seu rosto. Vicente puxa meu braço delicadamente, me fazendo dar uma volta e parar de frente para ele.
Ele segura meu maxilar com as mãos.

— Pare de rir. Estou realmente preocupado. Você por acaso tem um cabelo mágico que brilha ou coisa assim? Amigos de caráter duvidoso?

Pare de fazer piada sobre meu filme favorito. Talvez eu me apaixone por você. — brinco, mas não tenho certeza de que realmente é brincadeira.

Vicente me solta, com um grande sorriso enfeitando sua face e volta a procurar meus dedos, saindo da frente. Ele relança um olhar por cima do ombro, olhos castanhos sorrindo para mim.

— Talvez esse seja o plano.

Meu coração sobe pela garganta. Ele não pode dizer esse tipo de coisa e continuar andando naturalmente. Mas não tenho tempo de revirar a frase como tudo em minha cabeça. Vicente atravessa uma porta, estacando na entrada, e espera que eu me junte a seu lado.

— Princesa, — ele vira o pescoço para mim, cheio de um tipo inocente de euforia — bem vinda a seu castelo!

Só então dou uma boa olhada a meu redor. As estantes se estendem pelas paredes, atraindo-me como um ímã. Quero tocar cada livro encadernado em couro de outras épocas e respirar o ar de outros universos presos nas páginas. Decido que gosto desse lugar, gosto muito. Respiro fundo para absorvê-lo.

— Eu achei que fosse gostar. — diz atrás de mim — Com essa sua queda por coisas velhas.

— Coisas com história. — corrijo, sorrindo.

E esse lugar tem muita história. Tanta que tenho medo de maculá-la com a minha presença.

— Pergunta. — lembro-me que estamos em uma biblioteca pública e baixo a voz.

Vicente não responde, apenas assente, me dando autorização pra perguntar.

— Esse lugar é incrível e você vai ter que me arrastar para fora daqui se quiser que eu saia. — ele sorri e eu continuo — Mas eu acho difícil que a Biblioteca seja um som.

— Como assim? Bibliotecas são os lugares mais barulhentos que existem.
Olho torto para ele.

— Luísa, — ele me puxa e percebo que me afastei alguns passos, encantada com o local — ouça.

Faço o que ele pede, mas só recebo de volta uma quietude conformada e respeitosa, todo som suspenso em admiração  às histórias.

— Cada livro desses possui uma voz, todos eles contando suas histórias ao mesmo tempo. — há algo poético e imensamente tranquilo nele quando fala — Pode parecer uma cacofonia terrível, mas é como música se você souber escutar do jeito certo.

Fecho os olhos por dois segundos e quando os reabro, consigo ouvir o mesmo que Vicente. É como desbravar um novo mar em um oceano já conhecido, descobrir um novo universo na ponta de meus dedos.

— Histórias são únicas, sabia? Ninguém nunca vai ler o mesmo livro e ter as exatas mesmas sensações e emoções. O que você ouvir de qualquer desses livros é exclusivamente seu.

Eu não sei de onde ele tira esse tipo de ideias, mas gosto delas. Entrego-a para Jesus guardá-la, como cada um dos sorrisos.

Corro os dedos pelas lombadas gastas dos livros, procurando uma que cante mais alto para mim. Couro verde entremeado por arabescos dourados esquenta sob meu toque. Puxo-o da estante, sem olhar para o título gasto e praticamente ilegível estampado na capa. Percebo ser uma história medieval logo nas primeiras linhas, lembro-me do que eu costumava ler aos doze, por pura diversão. Pergunto-me quando foi que isso passou a ser raro.

Sento-me em uma das cadeiras de madeira da sala, Vicente ainda passeando pelos livros em busca de algo que o agrade. Levanto-me silenciosamente, deixando o livro marcado sobre a mesa. Ele puxa um livro de capa azul das estantes e abre em uma página aleatória. Seus olhos se arregalam instantaneamente ao passar por sobre as linhas. Aproximo-me sorrateira de suas costas, colocando-me na ponta dos pés para enxergar sobre seus ombros.

— O que está lendo?

Devo ter sussurrado perto demais de seu ouvido, porque vejo os pelinhos de seu pescoço eriçarem.

Vicente fecha o livro com um baque, devolvendo-o rapidamente à estante.

— Acredite em mim, nada que eu gostaria de ter lido. — ele estremece, me fazendo ter mais vontade ainda de saber o que teria causado tanto alarde.

Ele agarra minha cintura e vira meu corpo na direção contrária, forçando-me a caminhar de  volta para a mesa onde estava sentada e impedindo-me de fuxicar o livro de capa azul.

— Comporte-se. — ele avisa e retorna para o acervo.

Vicente finalmente escolhe uma história, essa parecendo mais nova, encadernada em preto fosco, e senta-se ao meu lado, absorto na leitura.

Volto para meu livro, mas sou incapaz de me concentrar tempo suficiente para impedir-me de espiar as páginas que tem a atenção de Vicente.

— Pare de roubar meu livro! — ele adverte de brincadeira assim que me vê olhando de esguelha. — Você não pode conseguir minha história pra você. Únicas, lembra?

Ergo uma sobrancelha.

— Não me subestime.

Ele aperta os olhos, aproximando o livro de si de modo a impedir minha visão. Dou risada, voltando a ler, e continuamos pela tarde inteira. Imersos em vozes diferentes e ainda assim conscientes da presença um do outro. Seria fácil me acostumar a isso.

Último Som Where stories live. Discover now