Capítulo 33

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É um pouco seco e escuro demais aqui dentro, quando não há barulho para ocupar o espaço

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É um pouco seco e escuro demais aqui dentro, quando não há barulho para ocupar o espaço. Não suporto estar sozinha dentro da minha própria cabeça. Não suporto as mentiras e as verdades que se enredam a ponto de me fazer vítima e vilã de minha própria história, como um inseto preso em uma teia.

Não há muito mais a fazer para preencher o vazio, sufocar o eco, exceto as ações nervosas que me mantém em movimento. Eu repito-as o tempo inteiro.

Espalho lápis e livros apenas para guardá-los de novo.

Jogo todas as roupas no chão, e então cato-as de volta, dobro e guardo.
Meu quarto oscila entre “sugado por um furacão” e “meticulosamente organizado” a cada poucos minutos.

Passo por cima das cartas o tempo inteiro, ainda jogadas pela fresta debaixo da porta, uma sendo adicionada à conta diariamente, como se tocá-las fosse o suficiente para queimar meus dedos. Não duvido de que seja.

Você esqueceu. Essa frase me atormenta.

Eu a reviro mais vezes e por mais tempo do que qualquer pessoa consideraria saudável, tentando encontrar o quando, ou o como, ou até mesmo o quem, mas é como tentar montar um quebra-cabeças com peças faltando, principalmente as do centro, as principais, que possuem a imagem.

Estou no meio de uma importantíssima sessão de arrumação nas gavetas de roupa quando algo me ocorre, tão paralisante que preciso de um segundo para engolir a ideia e pensar em me mexer: Você precisa perguntar.

Não são meus pensamentos que sugerem isso, é claro.

É aquela voz.

Cada vertente dela me desperta a me levantar e me mover, uma mistura de tons e marcas pessoais que me fazem nunca descobrir com certeza seu timbre.

Hoje, ela soa como a calmaria das águas, e tenho vontade de mergulhar nela e descobrir se é possível tocar o fundo.

Você precisa perguntar, repete, me tirando do estupor.

Encontro um lugar confortável no tapete e me sento de pernas cruzadas, meio torta, como se de frente para alguém.

— Você me disse que eu esqueci. Como eu fiz isso? — pergunto e espero.

Mas quando a resposta não vêm imediatamente, o barulho volta à tona, sempre forte, sempre implacável. Meus pensamentos se misturam em ruído constante e minha agitação recomeça. Toda vez que penso em milhares de formas e imagens e cores e ecos de sons que jamais serão ouvidos novamente, é como sucumbir. Minha respiração se esquece de que é necessária e congela. O frio é imediato. Passo a sugar água salgada para os pulmões, em vez de ar, e cada fôlego desce arranhando minha garganta.

É agonia pura e imparável.

Mas então aquela voz.

Ela para o afogamento.

Me devolve o ar.

Ampara a queda.

Respiro.

Devagar, eu respiro, e conseguir fazer isso é um presente que jamais fui grata por receber, mas agora sou.

O sussurro me faz respirar mais forte, mais certo, e é real, real, real. Tão real. Como se eu verdadeiramente pudesse conter a brisa em minhas mãos calejadas e acariciá-la.

Aquiete-se na presença do Senhor, espere nele com paciência.

Há apenas a voz, e depois dela, silêncio.

É uma quietude tão reconfortante que meu coração encolhe, lembrando-me de quão doloroso aquele mesmo silêncio tinha sido em outros momentos.

Agora, é quase prazeroso.

Uma paz imerecida.

Um favor.

Graça.

— Eu estou tentando. — sussurro, engolindo em seco — Estou tentando entender, estou tentando ouvir, quero saber...

Engasgo quando ele me interrompe.

Você não pode ouvir se não estiver em silêncio.

Silêncio.

Silencio.

Silêncio.

A palavra era sempre uma facada.

—Mas dói. O silêncio dói.

A dor é parte da cura. Nenhuma ferida cicatriza antes de haver boa parcela de dor.

— Não é só a dor. — argumento, soluços ameaçando escalar minha garganta, quer eu cuspisse as palavras quer não — O silêncio destrói quem eu sou. Sem música eu... — puxo o ar, no que sinto ser um ruído, mas não há som algum ali — não existo.

Nem sempre foi assim. Você se lembra como começou, filha? Do que mais você esqueceu além de mim?

Filha. A palavras dispara pontadas de um formigamento conhecido em meu peito, um tipo de saudade que não sei nomear. Nostalgia, talvez. Um sentimento latente, guardado no mais fundo de mim, esperando para retornar em toda a sua intensidade.

— Eu não sei. Não sei do que me esqueci. Não sei do que me lembro. Não sei quem eu sou agora. — uma lágrima escorre por meu rosto, e sinto seu caminho marcar lentamente minha pele.

Ouça bem, minha filha. Eu vou te contar a sua história.

Com o coração em chamas, a quietude me envolvendo com tanta força que tudo que eu podia fazer era tremer dentro de mim mesma, eu ouvi.

Você se lembra de como começou a amar tanto a música? Você se lembra, filha? Fui eu quem a dei a você, te entreguei como um dom, um presente exclusivo e especial. Quando você se entregava à música, estava tão perto do céu, e sabia disso. Sua música fazia com que você se sentisse intimamente perto de mim. Era uma coisa nossa, linda e inquebrável. Era por isso que você a amava.

As lágrimas correm sem permissão quando recordo a sensação. Não enxergo nada através de minha visão embaçada, mas tenho certeza de que, se abrisse os olhos, eu o veria aqui. Seu toque sobre mim ainda é o mesmo. Não mudou nada. Como eu pude esquecer? Como pude apagar uma presença tão gloriosa? Minha língua se curva dentro da boca para pronunciar aquela palavra de pertencimento, Pai, mas não posso. Não posso. Não ainda. Não posso.

Ele continua falando, e meu coração afunda cada vez mais.

Mas então você foi deixando aquilo que eu te dei tomasse meu lugar no seu coração. Você confundiu a felicidade de me honrar com a música com o prazer que produzia em si mesma. Trocou a liberdade que tinha em mim pelas cadeias construídas por seus próprios desejos. Você tornou a música o seu deus. Minha filha, quantas vezes eu a avisei contra a idolatria? Mais uma vez, você não me ouviu. Seus pensamentos agora eram tão barulhentos que te dominavam. Você não conseguia mais me ouvir.

Quanto mais rápido minha pulsação dispara, mais fraca me sinto. O sabor de ouvir meus pecados da boca daquele que um dia me senti à vontade para chamar de Pai é amargo. Eu o traí, e fingi para mim mesma que era inocente. Fingi tão bem e por tanto tempo que comecei a acreditar nisso. Fungo, limpando o rosto com as costas das mãos, mas isso não me recompõe.
Me desculpe, me desculpe, me desculpe, luto para dizer, mas as palavras morrem impotentes em minha língua.

Luísa, ele chama, mas não consigo responder.

A história não terminou ainda. , ele diz. E espera, com tanta paciência que minha alma derrete.

— Diga-me como termina. — imploro, palavras que doem ao deixar minha boca.

Você não me ouvia mais., ele repete, Mas eu sempre te amei demais pra te deixar ir.

Se já não estivesse chorando no momento em que ele começara a falar, agora seria o momento em que me desfaria. Meus ombros tremem tão forte que sinto medo de desmontar. Uma onda de amor tão grande quebra contra mim que não tenho reação a não ser deixar meu coração esmurrar as costelas, tentar absorver as palavras, entendê-las.

Não podia perder você assim tão fácil. Não você. Não a garotinha que eu segurei pela mão e girei em meus braços enquanto a ouvia contar pra mim. Então eu tirei o som de você. Te deixei no silêncio, porque era a única forma de fazer com que você voltasse a me ouvir. Você precisa de mim mais do que precisa de qualquer som que você jamais ouviu. O seu último som, o mais importante, sempre será a minha voz.

— Eu errei com você, traí seus planos e vendi meus dons. Eu desperdicei minha oportunidade de fazer você feliz, de ser amada por você. Não posso pedir uma segunda chance, — soluço, todo o meu corpo trêmulo — Mas ainda peço seu perdão.

Toda a minha graça repousa sobre você. Eu já a havia perdoado antes mesmo que se arrependesse. Sempre haverá segundas chances para os meus filhos.

É um transbordar tão grande de coisas dentro do meu peito que não consigo imaginar como descrever. Alívio, pertencimento, felicidade, amor, amor, amor, tanto amor que sinto meu peito expandir diversas vezes, além do possível.

Faço promessas para meu  Pai, digo a ele coisas que não imaginava que guardava em meu coração. Sinto seu sorriso sobre mim, sua afeição cobrindo cada centímetro meu.

— E agora? — sussurro, em algum momento.

Agora temos uma caminho enorme pela frente. Quero que reapresentar a você, filha. Desde que você queira conhecer a mim também.

— Eu quero — respondo, sem hesitar — É o que eu mais quero na vida.

Último Som Where stories live. Discover now