Capítulo 29

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Minhas mãos tremem quando eu bato na porta branca, o pequeno vitral colorido refratando luz

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Minhas mãos tremem quando eu bato na porta branca, o pequeno vitral colorido refratando luz. O impacto na madeira é silencioso.

Eu desmonto quando ela se abre, Vicente me olhando com preocupação, dizendo algo que eu não consigo ouvir e jamais vou conseguir outra vez.

Eu perdi a voz dele.

Para sempre.

Perceber isso dói tanto que me faz soluçar. Tenho pena da condição em que ele precisa me ver nesse momento. Olhos vermelhos, bochechas marcadas por trilhas de água e tremendo tanto que mal consigo me manter de pé.

Ele segura meu rosto com as duas mãos, firme.

— Luísa — leio pelo movimento de seus lábios — fala comigo.

Balanço minha cabeça para os lados, muito mais um ato nervoso do que uma negação.

— Não consigo ouvir, Vicente. Não consigo...

Minha garganta fecha. Meus pensamentos parecem nublados e desconexos, sem uma linha de coerência guiando-os.

Vicente me puxa para dentro de casa, bloqueando-nos do vento do lado se fora. Ele começa a sinalizar alguma coisa em libras, que não consigo entender, porque estou tomada por um descontrole tão grande que parto para cima dele.

Minhas mãos se fecham em punhos, acertando o peito dele sem parar e com força, enquanto as palavras jorram de mim.

— Não pare de falar! Por que você não está falando? Fale comigo! Por favor, não pare de falar, não pare...

Ele segura meus pulsos com uma mão só, enquanto me puxa pra perto com a outra. Ele me abraça como se eu não estivesse quebrada, como se eu ainda fosse a mesma menina a quem ele disse amar, debaixo das estrelas.

Eu não sou.

Mas me deixo cair sobre ele do mesmo jeito, e ele não me impede quando molho sua camisa com meu choro.

Ele apenas continua aqui.

— Como você chegou aqui? — ele gesticula enquanto fala e um nó afrouxa em meu peito.

Se ele continuar falando, posso pelo menos observar seus lábios.

Posso imaginar sua voz, que eu lutei tanto para decorar.

Posso imaginar a forma e o tom com que as palavras são proferidas.

Posso fingir que ainda o escuto.

— Dirigindo. — fungo — Eu vim dirigindo.

Seus olhos se arregalam e o medo transborda deles.

— Você veio dirigindo. — ele repete, sua expressão revelando tudo que não consigo mais escutar em sua voz.

Quero parar de fazê-lo sentir esse tipo coisa, mas não consigo controlar nem aos meus próprios sentimentos. É como se tudo sobre o que eu possuía domínio tivesse ganhando independência e escalado para fora de mim.

— Como... — ele pausa, me testando — Como foi que aconteceu?

Tento responder. Tento mesmo.

Abro a boca e tento forçar as palavras a saírem, mas elas ficam presas em minha garganta e impedem o ar de passar e de alguma forma escapam em forma de lágrimas pelos meus olhos.

É uma inundação. E estou me afogando.

Ele me segura de volta e, quando vejo, estou em seu colo, embalada como uma criança, minha cabeça em seu peito. Vicente senta-se no sofá da sala, mas não me solta. Não mexo um músculo para me afastar do conforto de seu calor.

Ele me deixa chorar enquanto afaga meus cabelos, me segura contra si como se pudesse me impedir de rachar apenas com seu abraço.

Sinto o baque surdo de seu coração sob minha bochecha. Eu gostaria de ouvi-lo bater. Curvo os dedos sobre ele, como se pudesse agarrar o movimento e transformá-lo em música. Uma nova pontada de dor se infiltra em meu peito.

— O que eu vou fazer... — sinto um arranhão em minha voz, talvez provocado pelo choro — O quê vou fazer sem a música?

Vicente permanece quieto, seus olhos caindo sobre mim. Não espero que ele responda. É por isso que quase me assusto quando ele o faz:

— Só se ouve bem quando se escuta com o coração. O essencial é inaudível aos ouvidos.

— Você estragou a citação.

Não consigo evitar um sorriso com sua tentativa, mas é um movimento estranho e não consigo segurá-lo por muito tempo. Um raio de sol devorado pela tempestade.

— Eu gosto mais dela assim. — ele sussurra, me encarando com intensidade.

Seus dedos correm pelo contorno dos meu rosto e ele me beija, um único toque delicado. Eu o amo tanto. Eu o amo tanto que sinto  meu coração dançar toda vez que o vejo, tanto que mal posso suportar ver qualquer coisa que não felicidade pura e genuína brilhando naqueles olhos escuros e refletida em seu sorriso.

E machuca. Porque, olhando para ele, sei que não posso fazer isso.

Escorrego para fora de seu colo e me ponho de pé, simulando uma firmeza que não possuo.

— Eu preciso voltar para casa.

Cada palavra é um suplício. Sinto vontade de engoli-las assim que saem. Mas não posso. Não vou.

— Tudo bem. Eu te levo.

— Não.

— Você não pode...

— Eu preciso de um tempo. — eu o interrompo, falando de uma vez. Como arrancar um band-aid.

As palavras caem pesadas e inertes entre nós. Vicente me encara com ferocidade e tremo de medo que ele proteste. Se ele disser uma palavra sequer, vou voltar atrás. Não sou forte o suficiente.

Mas o que quer que ele veja em meu rosto, faz com que ele se cale e engula em seco. Vejo a mágoa em seus olhos antes que ele se vire. Meu lábios inferior começa a tremer e preciso mordê-lo com força em troca de uma fugaz sensação de estabilidade.

— Eu vou te levar. — ele gesticula com dureza, desviando o tempo todo de meu olhar.

É melhor assim, digo a mim mesma. Mesmo que meu coração esteja despedaçando.

— Vicente... — é uma súplica.

— Não vou deixar você ir embora assim, e sozinha.

Ele passa a mão pelos cabelos, na mesma mania familiar, só que agora com exasperação.

— Ou você vai comigo, ou não sai daqui.

Fecho os olhos e concordo com a cabeça.

Só quero que acabe logo.

Eu aguento a dor, desde que não tenha que olhar mais para a dele.

🎼


Nós dois permanecemos em silêncio, do tipo que nunca houve entre nós, por todo o caminho de volta a minha casa. Coisas demais não foram ditas, e precisam permanecer assim.

Eu gostaria de dizer alguma coisa educada e boba, como se fosse uma carona normal em um dia normal. Ele sorriria e me seguraria por mais alguns minutos antes de me deixar ir. “Obrigada”, eu penso em dizer. Ou “me desculpa”. Ou “eu amo você”.

É por isso que, quando ele finalmente para em frente à minha porta, eu não digo nada, com medo de alguma dessas palavras escaparem.

Seus olhos não me deixam por um segundo sequer enquanto desço do carro. Ele me vê partir como se estivesse dando adeus a seu próprio coração.

Entro em casa sem me despedir.

Último Som Where stories live. Discover now