"A vida inteira, meu mundo foi feito de sons. Cores se convertiam em notas, formas tornavam-se acordes. E tudo convergia em uma melodia infindável, incomparável. Minha alma.
A música me reivindicou, me tomou pra si, me escolheu. Tudo o que vejo é m...
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— Você não está ouvindo, não é?
Pisco, só então retornando ao presente. Vicente busca minha atenção com os olhos, aquelas chamas alternando entre a brandura e o incêndio desenfreado, hipnóticas.
Balanço a cabeça, como se para clareá-la.
— Desculpe, eu estava...
— Distraída. — ele interrompe com a palavra exata, mas a forma como ele a pronuncia faz um incômodo se alastrar em meu estômago.
Não é culpa dele.
De jeito nenhum.
Eu simplesmente não consigo estar mais de cinquenta por cento presente em algo desde o fatídico dia. Estou travada na segunda voz constante na minha cabeça que diz “é só questão de tempo" e então “você não deveria ter esquecido”. Às vezes ela sussurra, com tamanha mágoa que sempre deixa um gosto ruim em minha boca e um eco em meu peito, “não tire isso de mim" . Não consigo calá-la nem por um segundo.
A verdade é que eu estou apavorada e não consigo me livrar dessa sensação, por mais que eu tente.
— Eu sinto saudade de você. — ele diz, e tenho vontade de chorar, porque eu também sinto.
Saudade dele.
Saudade de mim.
Saudade da garota que não pensava tanto e que sorria como se não houvesse um grande trabalho para ignorar todos os medos gritando por traz disso.
É, eu sinto saudade.
Mas não posso dar vazão a isso, não agora, talvez nunca, então tento mudar de assunto e torço para que ele não lute contra, pelo menos dessa vez.
— O que você dizia?
Ele olha pra mim por cima dos ombros, olhos tão fixos que os vejo transformar-se em mármore, como uma esculturas de Michelangelo, e cede, como se dissesse “não espere que eu faça isso outra vez".
— Eu disse que quero você venha comigo.
Ele nota minha expressão confusa, porque explica:
— Você realmente não ouviu nada? — estou prestes a me desculpar de novo, mas ele não dá tempo para isso — Para a pousada dos meus avós. É meio que uma tradição de família e quero que você vá.
Estou tão surpresa com o pedido repentino que mal consigo falar.
— É sério?
— É claro que é. — resposta rápida, sem hesitar. Ele pensou sobre isso.
Seguro sua mão direita por cima da marcha do carro, brincando lentamente com cada um de seus dedos.
— Por quê?
— Sendo sincero? — assinto — Porque quero dar memórias boas pra você. Porque quero que você pare de pensar tanto. Porque quero que você viva, Luísa.
Quase posso ouvir seu coração batendo. Encaro-o com tanto fascínio que sinto o tempo desacelerar.
Vicente estaciona o carro e espera, talvez por uma resposta ao convite, mas há apenas uma frase em minha cabeça, projetando-se acima de todas as outras.
— Não quero sentir saudade de você, Vicente.
Não quero perder você, é o que as palavras significam.
Mas não preciso explicá-las.
Vicente entende.
É apenas um vislumbre de covinhas em sua bochecha, mas aquele sorriso faz uma pequena chama se desenrolar em mim.
Sinto o coração bater mais quente pelo resto do dia.
🎼
— O que você acha? — eu pergunto à minha mãe mais tarde, depois de contar a ela sobre o convite de Vicente.
Eu ainda não dei uma resposta, e ele parecia especialmente agitado por uma quando nos despedimos.
Minha mãe inclina-se sobre o balcão da cozinha, seus cabelos um tom mais escuros que os meus descendo como cascatas sobre seu ombro.
— Querida, você não é mais uma adolescente irresponsável que eu preciso pegar no pé. Confio em suas decisões a respeito de si mesma.
Ela se move pela cozinha, toda feita de fluidez, e faz uma careta ao cruzar com o anão de jardim que meu pai trouxe da viagem através da janela. Disfarço uma risada tossindo em minha mão.
— A real questão— ela retoma o assunto, esquecendo momentaneamente sua rixa com o bonequinho — é essa: Você quer ir?
Ela me cobre de escrutínio, seus olhos se demorando em meu rosto, me analisando da maneira que apenas mães fazem.
— Eu vou te fazer uma pergunta, e acho que você vai saber o que fazer quando me responder.
Me remexo no banco, esperando.
— Quanto você gosta desse menino?
Pisco, congelo, e então pisco de novo. É como agitar um globinho de neve e assistir os flocos caírem de volta, o que acontece da minha cabeça. Cinco palavras desencadearam milhares de pensamentos e memória.
Ouço sua risada ao fundo, apenas uma sombra .
— Tudo bem, responda apenas para si mesma.
Meu olhos sobem para os dela, e eles brilham, como se contivessem um segredo muito bem guardado.
Subo as escadas sem uma palavra.
🎼
A bugiganga de viagem que eu recebi do meu pai é muito mais agradável. Um bastidor de tamanho médio com apenas uma diminuta libélula bordada no canto inferior esquerdo, mal somando dois centímetros. Pendurei-o na parede em frente à minha cama e não consigo parar de encarar o pequeno inseto eternizado contra o tecido.
Parece... incompleto.
Um trabalho abandonado, uma história interrompida antes do “felizes para sempre”.
Aquela libélula sozinha, esperando a tanto tempo por uma companhia que não virá. Esperando por mais vida.
Fecho os olhos e os reabro.
Ela continua lá. Só.
Agarro o celular na mesa de cabeceira e dígito uma mensagem.