Capítulo 20

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— Você não está ouvindo, não é?

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— Você não está ouvindo, não é?

Pisco, só então retornando ao presente. Vicente busca minha atenção com os olhos, aquelas chamas alternando entre a brandura e o incêndio desenfreado, hipnóticas.

Balanço a cabeça, como se para clareá-la.

— Desculpe, eu estava...

— Distraída. — ele interrompe com a palavra exata, mas a forma como ele a pronuncia faz um incômodo se alastrar em meu estômago.

Não é culpa dele.

De jeito nenhum.

Eu simplesmente não consigo estar mais de cinquenta por cento presente em algo desde o fatídico dia. Estou travada na segunda voz constante na minha cabeça que diz “é só questão de tempo" e então “você não deveria ter esquecido”. Às vezes ela sussurra, com tamanha mágoa que sempre deixa um gosto ruim em minha boca e um eco em meu peito, “não tire isso de mim" . Não consigo calá-la nem por um segundo.

A verdade é que eu estou apavorada e não consigo me livrar dessa sensação, por mais que eu tente.

— Eu sinto saudade de você. — ele diz, e tenho vontade de chorar, porque eu também sinto.

Saudade dele.

Saudade de mim.

Saudade da garota que não pensava tanto e que sorria como se não houvesse um grande trabalho para ignorar todos os medos gritando por traz disso.

É, eu sinto saudade.

Mas não posso dar vazão a isso, não agora, talvez nunca, então tento mudar de assunto e torço para que ele não lute contra, pelo menos dessa vez.

— O que você dizia?

Ele olha pra mim por cima dos ombros, olhos tão fixos que os vejo transformar-se em mármore, como uma esculturas de Michelangelo, e cede, como se dissesse “não espere que eu faça isso outra vez".

— Eu disse que quero você venha comigo.

Ele nota minha expressão confusa, porque explica:

— Você realmente não ouviu nada? — estou prestes a me desculpar de novo, mas ele não dá tempo para isso — Para a pousada dos meus avós. É meio que uma tradição de família e quero que você vá.

Estou tão surpresa com o pedido repentino que mal consigo falar.

— É sério?

— É claro que é. — resposta rápida, sem hesitar. Ele pensou sobre isso.

Seguro sua mão direita por cima da marcha do carro, brincando lentamente com cada um de seus dedos.

— Por quê?

— Sendo sincero? — assinto — Porque quero dar memórias boas pra você. Porque quero que você pare de pensar tanto. Porque quero que você viva, Luísa.

Quase posso ouvir seu coração batendo.
Encaro-o com tanto fascínio que sinto o tempo desacelerar.

Vicente estaciona o carro e espera, talvez por uma resposta ao convite, mas há apenas uma frase em minha cabeça, projetando-se acima de todas as outras.

— Não quero sentir saudade de você, Vicente.

Não quero perder você, é o que as palavras significam.

Mas não preciso explicá-las.

Vicente entende.

É apenas um vislumbre de covinhas em sua bochecha, mas aquele sorriso faz uma pequena chama se desenrolar em mim.

Sinto o coração bater mais quente pelo resto do dia.

🎼

— O que você acha? — eu pergunto à minha mãe mais tarde, depois de contar a ela sobre o convite de Vicente.

Eu ainda não dei uma resposta, e ele parecia especialmente agitado por uma quando nos despedimos.

Minha mãe inclina-se sobre o balcão da cozinha, seus cabelos um tom mais escuros que os meus descendo como cascatas sobre seu ombro.

— Querida, você não é mais uma adolescente irresponsável que eu preciso pegar no pé. Confio em suas decisões a respeito de si mesma.

Ela se move pela cozinha, toda feita de fluidez, e faz uma careta ao cruzar com o anão de jardim que meu pai trouxe da viagem através da janela. Disfarço uma risada tossindo em minha mão.

— A real questão— ela retoma o assunto, esquecendo momentaneamente sua rixa com o bonequinho — é essa: Você quer ir?

Ela me cobre de escrutínio, seus olhos se demorando em meu rosto, me analisando da maneira que apenas mães fazem.

— Eu vou te fazer uma pergunta, e acho que você vai saber o que fazer quando me responder.

Me remexo no banco, esperando.

Quanto você gosta desse menino?

Pisco, congelo, e então pisco de novo. É como agitar um globinho de neve e assistir os flocos caírem de volta, o que acontece da minha cabeça. Cinco palavras desencadearam milhares de pensamentos e memória.

Ouço sua risada ao fundo, apenas uma sombra .

— Tudo bem, responda apenas para si mesma.

Meu olhos sobem para os dela, e eles brilham, como se contivessem um segredo muito bem guardado.

Subo as escadas sem uma palavra.

🎼

A bugiganga de viagem que eu recebi do meu pai é muito mais agradável. Um bastidor de tamanho médio com apenas uma diminuta libélula bordada no canto inferior esquerdo, mal somando dois centímetros. Pendurei-o na parede em frente à minha cama e não consigo parar de encarar o pequeno inseto eternizado contra o tecido.

Parece... incompleto.

Um trabalho abandonado, uma história interrompida antes do “felizes para sempre”.

Aquela libélula sozinha, esperando a tanto tempo por uma companhia que não virá. Esperando por mais vida.

Fecho os olhos e os reabro.

Ela continua lá. Só.

Agarro o celular na mesa de cabeceira e dígito uma mensagem.

Vicente:

Quantas roupas preciso pôr na mala?: Agora

Último Som Where stories live. Discover now