Capítulo 11

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Me sinto uma criança em um parque de diversões. 

— Por que você gosta tanto de coisas velhas? — Vicente pergunta, provocando, assim que percebe meus olhos vagando o tempo inteiro por cada cantinho do Theatro Municipal.

— Não são coisas velhas, são coisas com história. — defendo.

Coisas com história, como esse lugar. Sinto vontade de tocar os detalhes e acabamentos em dourados, observar de perto as cúpulas azuis do prédio, fotografar como nós parecemos brilhar fracamente sob a luz quente aqui dentro, como uma chama bruxuleante.

Vicente mantém a mão na minha, me guiando. É estranho o quanto eu perdi dessa cidade em tanto tempo.

Adentramos junto a sala de concerto, e o mundo se expande. Minha própria respiração se torna música nesse espaço, do mesmo jeito que sempre aconteceu exclusivamente para mim. Me sinto tão em casa aqui que sei que meus olhos brilham. Sinto Vicente me observar e aperto sua mão na minha, incapaz de formular uma frase sequer. A promessa do som me sobrepuja, me inunda de vontades, me eleva.

Nós nos acomodamos no grupo de assentos das esquerda, perto do meio, nas duas cadeiras mais próximas da ponta da fileira.

Não demora muito até que a orquestra suba no palco. E então a música começa.

É indescritível.

É arrebatador.

É ver a minha alma dançar livre de medo pelas notas vibrando a cada toque na corda, cada sopro, cada partícula de ânimo, vontade e paixão debruçadas sobre a música.

Sou carregada nos braços pela melodia, meu peito sobe intensamente com a mágica de ser envolvida por aquela sensação.

Êxtase puro e sincero se alastra pela minha pele, arrepiando-a.
Quando penso no paraíso, é dessa forma que eu o sinto.

Música infindável e gloriosa.
Fluo junto a ela, olhos bem abertos, coração batendo com sincronia ao que eu ouço, a palma quente de Vicente pressionada contra a minha como uma espécie de acordo fundamental.

Sou feita, desfeita e refeita. Bem aqui. Bem agora.

Presto atenção, para não perder nada, para não deixar nada escapar.

Sonatas de piano,

Sinfonias reverberando pelas paredes de luz difusa até que eu consiga enxergar a melodia das cores. Escuto-as cantar para mim.

Ainda estou imersa nessa atmosfera quando anunciam a primeira pausa no concerto. Vicente fecha os dedos sobre os meus, entrelaçando-os, e se levanta. Meu  corpo eleva-se junto com o dele e começamos a caminhar, ele à frente, me puxando pelo teatro. Apesar de confusa, mantenho o ritmo, tentando puxar a manga de sua camisa e pedir uma explicação.

Vicente vira o rosto sobre o ombro para me olhar, um sorriso suave desenrolando-se sobre seus lábios.

— Confie em mim. — ele sussurra, sem parar de andar.

Faço que sim, sentindo o nervosismo se espalhar como líquido por mim.

A barra do meu vestido flutua quando ele me faz dar uma volta súbita e encontramos um recuo nas paredes, uma porta mal iluminada. Suas mãos descem para minha cintura, impedindo que eu tropece, e consigo sentir sua risada murmurada em meu pescoço. Ouço uma agitação abafada ao longe, como um ruído de movimentação. Ele nos estabiliza e então se afasta. Olho ao redor, para a bagunça organizada de um ambiente de transição. Estamos em uma coxia. O barulho dos músicos voltando ao palco soa ali perto. Um tremor percorre meu corpo e sinto o chiar nos meus ouvidos.

— Vicente...

— Relaxe. — ele volta a aproximar-se, suavemente brincando com os anéis dourados em meus dedos. — Ainda preciso te mostrar um som.

Inclino a cabeça, confusa. Às vezes é difícil acompanhar o rumo dos pensamentos de Vicente. Ele acabara de me mostrar milhares de sons, uma combinação mais fascinante do que eu jamais experimentei na minha vida.

— A orquestra...

Ele balança a cabeça, como se eu tivesse entendido tudo errado. À luz reduzida, seus olhos escurecem, tornando-se mais intensos.

— Não é esse o som que eu queria te dar. — Vicente tira algo de detrás das costas, algo que eu não havia reparado que estava lá. Ele vira minhas mãos para cima e apoia o objeto em ambas. — Este é. Quero que se ouça fazendo parte disso. Toque com eles, Luísa.

Finalmente olho para o contorno branco e sólido em minhas mãos. A luz reflete nos traços curvilíneos do violino nelas contido. Gelo acumula-se em meu estômago, estranhamente reconfortante.

Vicente afasta-se, dando-me espaço para assumir posição.

— Espero que conheça a próxima música.

Ergo o instrumento em meus dedos trêmulos, encaixando meu queixo na queixeira. Tateio o espelho delicadamente e posiciono o arco, esperando.

Puxo o ar quando a primeira nota inicia.

Eu conheço.

É L'Inverno das Quatro Estações de Vivaldi.

Me concentro e começo a tocar, minha mão esquerda trabalhando em sincronia com os movimentos do arco. A música flui de mim e espirala, dando forma a minhas sensações e sentimentos.

Sempre fui fascinada por essa composição, desde a primeira vez que a ouvi, com suas notas rápidas e crescentes. Levei anos até conseguir executá-la com perfeição. Tocá-la nesse momento, com os olhos de Vicente fixos em mim e uma orquestra à minhas costas é como descobrir um tesouro em uma velha caixa de joias que sempre me pertenceu. Novo e velho, velho e novo, como a saudade do futuro.
Fecho os olhos e deixo os acordes dominarem minha cabeça, a vertiginosa melodia do violino me fazendo ondular. Quase sinto a neve do inverno molhando meus cabelos, misturando seu branco puríssimo ao vermelho intenso de minhas roupas.
O ritmo frenético esmorece, suas últimas notas estendendo-se por segundo infinitos antes que eu reabra as pálpebras para observar Vicente, estático, de lábios entreabertos a poucos metros de mim.

O que quer que tenha sido toda a gama de emoções que os últimos minutos me proporcionaram, ele entende. E as deu de presente para mim.

Sem me conter, atravesso o espaço e o abraço, meus braços se cruzando em seu pescoço, o violino ainda em minhas mãos, pressionando sua pele. Vicente me segura contra si, e permaneço inclinada contra ele, sem descobrir outra forma de demonstrar o que sinto. Não com palavras.

Eu o solto depois de uma pequena eternidade, meus braços descendo lentamente, de voltas às laterais do meu corpo.

Vicente sorri tanto, tanto, e meu coração não aguenta o peso de olhar para ele, dançando vertiginosamente em uma batida que apenas nós conhecemos.

Em um ato impensado, volto a me aproximar. Meu polegar vai parar em sua covinha direta, o indicador na esquerda. Ele espalma a mão na curva da minha coluna, perto, perto, perto. 
Os olhos de Vicente estão na minha boca. O mundo não precisa silenciar para que eu ouça o compasso que criamos para nós mesmos.

Minha respiração tremula, meu olhar caindo para seus lábios assim como os dele se fixam no meus. Dura um segundo desorientador, a tentação de dar um passo além, de explorar aquilo que tínhamos iniciado.

Mas então a música explode em um recomeço agudo, forçando-me a recobrar minha mente, perdida em algum lugar naquela proximidade. Deixo minhas mãos caírem, sorrindo incerta, e sussurro com palavras relutantes em deixar ir aquele momento:

— É melhor nós voltarmos.

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