— Estrelinha!
A voz de papai soou tão enérgica e tranquila que nada parecia ter mudado. Os dias não pareciam ter se passado e aquele ainda parecia o homem doce que havia me criado.
Seus olhos ainda eram os mesmos que um dia haviam velado meu sono, penteado meus cabelos e me colocado nas costas enquanto minha versão pequenina e espevitada insistia em chamá-lo de "pangaré do inferno", todas as vezes em que ele fazia meu gosto ao brincar de cavalinho. Ninguém além de mamãe e ele ousavam rir de meu atrevimento. Mas ele também nunca havia me repreendido.
Por isso, mesmo reticente, cheia de medo e rancor, eu corri para seus braços e o abracei como tantas vezes havia feito. Foi inevitável.
— Papai. — Minha voz pareceu abafada, mas não me importei. — Senti tanto sua falta.
— E eu a sua, estrelinha.
Lúcifer afagou meus cabelos num gesto tipicamente paternal que persistia em corroer-me o peito. Ele era Satanás? Sim. Mas isso não poderia ser uma barreira tão gigantesca. Ele poderia e ele teria sido um bom pai. Ainda assim, embora eu não me lembrasse com clareza alguma, tinha vivido o suficiente para compreender as naturezas das criaturas.
Ele não precisava esbofetear minha face para que eu soubesse que ele o faria no exato momento em que o contrariasse.
E os seus atos anteriores falavam por si só. Um tapa era um ato de generosidade. Até mesmo acabar estripada era um ato de compaixão considerando a perversidade e criatividade para seus atos.
Apertei-o ainda mais naquele abraço.
Por favor. — Implorei silenciosamente. — Não faça jus aos meus temores.
Entretanto, quando me afastei levemente, encarando a face acima, notei-a magneticamente vidrada na paisagem além da claraboia. Havia cobiça em seus olhos. Apenas cobiça. E gota alguma gota de paternidade.
Meu abraço então, tornou-se frigido.
O tempo distante havia retirado uma viseira que eu jamais admitia que tivera. Lucius estava certo, Edgar estava certo e eu, fatalmente errada.
— Como foram os últimos dias? — Perguntou ele numa falsa preocupação. Quando ele começou a mentir tão mal?
— Desconfortáveis, com toda a certeza — Proferi.
Seus olhos se voltaram sinceramente para mim pela primeira vez desde que chegara.
— Por quê? O que houve?
— Muitas coisas. — Afirmei me afastando. — Algumas das que eu não sabia, outras que me negava a aceitar. Mas que ainda foram reais. Independente de minha escolha.
— Especifique, querida. — Ele pediu. — Sabe que não sou seu fã quando está sendo prolixa, realmente odeio isso.
— Eu não sabia. Na verdade, não sabia que havia algo que odiava em mim.
— Ódio é uma palavra muito forte e nunca direcionada a você. Ao menos ainda. — Papai completou como se aquela fosse uma piada, até mesmo sorriu.
Mas eu baixei meus olhos. O "ainda" ressoava alto em meus ouvidos.
Não responder de pronto havia sido o gatilho para que o som que vinha da festa nos envolvesse, mesmo que de maneira abafada. Como se somente notasse naquele momento, papai me olhou.
— Por mais que eu tenha adorado vê-la agora... — Iniciou ele. — Por qual razão está aqui?
Engoli em seco pelo que deveria ser a décima vez. Não respondi.
ESTÁ A LER
As Crônicas do Caos - Perdição (EM REVISÃO)
Paranormal🐍 Até onde você iria por uma segunda chance? Serafine já foi um anjo, da mais alta hierarquia, mas tudo mudou quando ela quis interferir na liberdade de escolha dos homens. Condenada a uma eternidade num corpo inerte, em Perdição, Serafine s...