→4

773 37 0
                                    

O vagão estava escuro como breu, mas nossos olhos, agora adaptados para ver no escuro, permitiram que enxergássemos um caminho entre as pilhas de carvão no vagão.

Por fim, uma porta nos levou até o que parecia ser o vagão-dormitório da primeira classe. Quando ninguém estava olhando, roubamos algumas camisas e calças de uma mala e vestimos as roupas. Não cabiam perfeitamente, mas serviriam.

Enquanto nos aventurávamos pelo corredor do vagão e o trem sacolejava ruidosamente a nossos pés, senti alguém segurando meu ombro. Por reflexo, girei o braço para meu agressor e rosnei.

Um homem com uniforme de bilheteiro foi atirado para trás e bateu na parede de um compartimento com um baque.

Cerrei os dentes para evitar que minhas presas se projetassem.

-Mil perdões! O senhor me assustou e... - me interrompi.

Minha voz era desconhecida a meus próprios ouvidos. Na última semana, a maior parte de minhas interações foram em sussuros roucos. Fiquei surpreso com o som da voz humana. Mas eu era muito poderoso do que traía minha voz. Levantei o homem e endireitei seu quepe marinho - O senhor está bem?

-Creio que sim - disse o bilheteiro num tom estupefato, apalpando os braços para saber se ainda estavam ali. Parecia ter uns 20 anos, com a pele pálida e os cabelos ruivos. - Sua passagem?

-Ah sim, as passagens - disse Damon, num tom suave que não deixava transparecer que tínhamos fugido a galope da morte apenas minutos antes - Estão com meu irmão.

Lancei-lhe um olhar furioso e ele sorriu para mim, calmo e debochado. Olhei-o bem. Suas botas estavam enlameadas e desamarradas, a camisa de linho por fora da calça, mas havia algo nele - mais do que seu nariz aquilino e queixo aristocrático - que o deixava quase majestoso. Nesse momento, mal o reconheci: este não era o Damon com quem fui criado ou aquele que vim a conhecer na semana passada. Agora estávamos fugindo de Mystic Falls para um ponto invisível e irreconhecível do horizonte, Damon era outra pessoa, alguém sereno e imprevisível. Neste ambiente desconhecido, eu não sabia se éramos no crime ou inimigos jurados.

O bilheteiro voltou a atenção para mim, torcendo o lábio ao ver meu desmazelo. Apressadamente, enfiei a camisa para dentro da calça.

-Estávamos correndo e..._comecei a arrastar as palavras, na esperança de que o sotaque do Sul conferisse ao que eu dizia um ar de sinceridade... e de humanidade. Seus olhos de peixinho-dourado se arregalaram com ceticismo, e então lembrei de uma habilidade vampiresca que Katherine usou em mim com ótimos resultados: a coação - Eu já lhe mostrei minha passagem - falei lentamente, torcendo para que ele acreditasse.

O bilheteiro franziu as sobrancelhas.

-Não, não mostrou - respondeu ele com a mesma lentidão, tomando cuidado a mais de enunciar cada palavra como se eu fosse um passageiro especialmente idiota.

Praguejei em silêncio e inclinei para mais perto dele.

-Mas eu lhe mostrei mais cedo - Olhei fixamente em seus olhos até que os meus começaram a se envesgar.

O bilheteiro deu um passo para trás e piscou.

-Todos precisam ter a passagem em mãos o tempo todo.

Meus ombros arriaram.

-Bem...Humm...

Damon deu um passo á minha frente.

-Nossas passagens estão no vagão-dormitório. O erro foi nosso- disse ele numa voz baixa e sedutora. Não piscou nem uma vez ao fitar as pálpebras caídas do homem.

A expressão do bilheteiro vacilou e ele recuou um passo.

-O erro foi meu. Podem ir, cavalheiros. Perdoem-me pela confusão - Sua voz era distante enquanto ele tocava o quepe, depois se afastou de lado para nos deixar entrar no vagão masculino.

Assim que a porta se fechou ás nossas costas, segurei Damon pelo braço.

-Como fez aquilo? - perguntei, Katherine teria lhe ensinado a baixar a voz, olhar a vítima nos olhos e obrigar o pobre coitado a obedecer as suas ordens? Cerrei os dentes, perguntando-me se ela contara a ele a facilidade com que me coagiu. Imagens faiscaram em minha cabeça: Katherine arregalando os olhos, implorando-me para guardar seu segredo, impedindo meu pai de persegui-la. Balancei a cabeça como quem tenta expulsar as imagens do cérebro.

-E agora, quem está no comando, maninho? - balbuciou Damon, se deixando cair no assento de couro e bocejando ao estender as mãos para a nuca como se estivesse pronto para tirar um cochilo.

-Vai dormir agora? Justo agora? - exclamei.

-E por que não?

-Por que não? - repeti, como um idiota. Estendi os braços, gesticulando para o que nos cercava. Estávamos entre elegantes homens de fraque e cartola que, apesar da hora, ocupavam-se no bar revestido de madeira ao canto.Um grupo de homens mais velhos jogavam pôquer, enquanto jovens fardados cochichavam, bebendo uísque. Passaríamos despercebidos nesse grupo. Não havia bússolas de vampiros que revelassem nossas verdadeiras identidades. Ninguém sequer olhou quando nos sentamos.

Empoleirei-me em um pufe em frente a Damon.

-Não está vendo? - falei - Ninguém aqui nos conhece. Esta é nossa chance.

-È você que não vê - respondeu Damon, inspirando profundamente - Sente esse cheiro?

O cheiro quente e pungente de sangue encheu minhas narinas, e o bater de corações ecoou em mim como cigarras numa tarde de verão. De imediato uma dor cauterizante cortou meus lábios. Cobri a boca com as mãos, olhando desesperadamente em volta para ver se alguém tinha percebido os longos caninos que se projetavam de minhas gengivas.

Damon soltou um riso irônico.

-Você jamais será livre, maninho. Está preso ao sangue, aos humanos. Eles o tornam desesperado e necessitado... Fazem de você um assassino.

À palavra assassino, um homem de barba ruiva e rosto ressecado pelo sol nos olhou incisivamente do outro lado do corredor. Obriguei-me a sorrir com benevolência.

-Vai nos meter em problemas - sibilei.

-E você só pode culpar a si mesmo por isso - respondeu o Damon. Ele fechou os olhos, indicando o fim de nossa conversa.

Suspirei e olhei pela janela. Devíamos estar apenas 5 quilômetros de Mystic Falls, mas parecia que tudo o que eu conhecia simplesmente deixara de existir. Até o clima era diferente - a chuva tinha cessado e o sol de outono espiava por entre nuvens finas, penetrando no vidro que separava o trem do mundo. Era curioso: embora nossos anéis nos protegessem do sol, que queimaria nossa carne, o corpo celeste ardente me deixava um tanto sonolento.

Obrigando-me a levantar, refugiei-me nos corredores escuros que levavam de um compartimento a outro. Andei entre os assentos de veludo dos vagões da primeira classe até os bancos de madeira da segunda.

Por fim acomodei em uma cabine vazia, puxei as cortinas, fechei os olhos e abri os ouvidos.

Espero que aqueles rapazes da União saiam de Nova Orleans e nos deixem em paz...

Depois de ver as belezas da Bourbon Street, sua viagem da Virgínia não parecerá a mesma...

Você precisa ter cuidado. Existe vodu por lá, e dizem alguns que é lá que os demônios saem para brincar...

Abri um sorriso. Nova Orleans parecia o lugar perfeito para chamar de lar.

Deitei confortavelmente na cama improvisada, satisfeito por relaxar e deitar que o trem me embalasse em uma espécie de torpor. Descobri que me alimentava muito melhor depois que descansava.

sede de sangue -diarios de Stefan -vol.2Where stories live. Discover now