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Damon estava caído no mesmo lugar, com um copo de uísque intocado transpirando na mesa de carvalho á sua frente.

-Vamos - falei asperamente, puxando-o pelo braço.

O trem reduzia a velocidade, e á nossa volta passageiros reuniam seus pertences e faziam uma fila atrás de um bilheteiro que se postava diante das portas negras de ferro que levavam ao mundo exterior. Mas como não estávamos sobrecarregados de posses e éramos abençoados com força, sabia que nossa melhor opção era sair do trem como entramos: pulando pelos fundos do último vagão. Queria que já estivéssemos longe quando alguém percebesse alguma coisa errada.

-Você parece ótimo, maninho - Seu tom era leve, mas a palidez cor de giz na pele e arroxeado sob seus olhos revelavam o quanto estava cansado e faminto. Por um instante, desejei ter deixado um pouco de Lavínia para ele, mas rapidamente rejeitei a ideia. Precisava ter o pulso firme. Assim meu pai treinava os cavalos. Negando-lhes comida até que finalmente parassem de puxar as rédeas e se submetessem a ser montados. Era mesmo com Damon. Ele precisava ser vencido.

-Um de nós precisa manter as forças - falei a Damon, de costas para ele enquanto ia para o último vagão do trem.

O trem ainda deslizava, raspando as rodas nos trilhos de ferro. Não tínhamos muito tempo. Voltamos através da fuligem de carvão até a porta, que abri facilmente.

-No três! Um... dois... - Segurei seu pulso e pulei. Nossos joelhos bateram com força na terra dura.

-Sempre exibido, não é, irmãozinho? - disse Damon, estremecendo. Percebi que suas calças se rasgaram nos joelhos com a queda e as mãos estavam marcadas do cascalho. Fiquei intacto, a não ser por um arranhão no cotovelo.

-Devia ter se alimentado - Dei de ombros.

O apito do trem soou e dei uma olhada nos arredores. Estávamos na periferia de Nova Orleans, uma cidade movimentada, cheia de fumaça e um aroma que parecia uma combinação de manteiga, lenha e água seja. Era muito maior do que Richmond, que até então era a maior cidade que eu conhecia. Mas havia algo a mais, uma sensação de perigo que enchia o ar. Eu sorri. Aqui estava uma cidade na qual podíamos desaparecer.

Comecei a caminhar em direção á cidade com a velocidade sobre-humana que ainda não usara; Damon vinha atrás de mim, os passos ruidosos e desajeitados, mas constantes. Descemos a Garden Street, claramente uma das avenidas principais da cidade. À nossa volta havia filas de casas bem-cuidadas e coloridas como se fossem de bonecas. O ar era denso e úmido, e vozes falando francês, inglês e línguas que nunca ouvi criavam uma colcha de retalhos feita de sons.

Em ambos os lados era possível observar vielas que levavam ao mar e filas de vendedores nas calçadas negociando tudo: de tartarugas recém-capturadas a pedras preciosas importadas da África. Mesmo a presença de soldados da União em cada esquina, com suas fardas azuis e mosquetes na altura dos quadris, parecia um tanto festiva. Era um carnaval em todos os sentidos da palavra, o tipo de cena que Damon teria amado quando era humano. Virei-me para olhar para trás. Os lábios dele, é claro, estavam curvados num leve sorriso, os olhos brilhando de uma forma que eu não testemunhava havia séculos. Estávamos numa aventura juntos e, agora, longe das lembranças de Katherine e dos destroços de papai e Veritas, talvez Damon pudesse finalmente aceitar quem era e abraçar a nova vida.

-Lembra quando dissemos que viajaríamos pelo mundo? - perguntei, virando-me para ele - Agora esse é o nosso mundo.

Damon assentiu sem muita veemência.

-Katherine me falou de Nova Orleans. Ela já morou aqui.

-Se ela estivesse aqui, ia querer que a cidade fosse dela... Para morar, ficar, saciar-se e conquistar seu lugar no mundo.

-Sempre o poeta - Damon sorriu com malícia, mas continuou a me seguir.

-Talvez, mas é a verdade. Tudo isso é nosso - falei para encorajá-lo, abrindo os braços.

Damon levou algum tempo para considerar minhas palavras e simplesmente disse:

-Muito bem, então.

-Muito bem? - repeti, quase sem acreditar. Era a primeira vez que ele me olhava nos meus olhos desde a nossa luta na pedreira.

-Sim, vou com você - Ele entrou em uma ruela circular, apontando as várias construções - E então, onde vamos ficar? O que vamos fazer? Mostra-me este admirável mundo novo - Os lábios de Damon se torceram num sorriso e eu não sabia se ele estava zombando de mim ou se falava com franqueza. Preferi acreditar nesta última.

Farejei o ar de imediato capturei um sopro de limão e gengibre. Katherine. Os ombros de Damon enrijeceram; ele também devia ter sentido o cheiro. Sem dizer nada, demos meia-volta e começamos a descer a viela sem placas, seguindo uma mulher com um vestido de cetim lilás e uma grande touca de sol por cima dos cachos escuros.

-Senhora - chamei.

Ela se virou. As bochechas brancas tinham muito rouge e seus olhos eram maquiados á lápis. Ela me pareceu ter uns 30 anos, e rugas de preocupação já vincavam a testa clara. O cabelo caía em fiapos pelo rosto e o vestido tinha um decote baixo, revelando muito mais de seu colo sardento do que o estritamente decoroso. Soube imediatamente que era uma meretriz, sobre as quais cochichávamos quando meninos e apontávamos quando estávamos na taberna de Mystic Falls.

-Procuram por diversão, rapazes? - disse ela languidamente, o olhar disparando entre mim e Damon. ela não era a Katherine, nem chegava perto, mas pude ver o brilho nos olhos de Damon.

-Acho que não será problema encontrar um lugar pra ficar - sussurei para ele

-Não a mate - respondeu Damon aos sussuros, o queixo mal se mexendo.

-Venham comigo. Tenho algumas meninas que adorariam conhecê-los. Parece que vocês precisam de uma aventura. Certo? - disse ela, piscando.

Uma tempestade se formava e eu ouvia vagamente trovões a distância.

-Sempre estamos á procura de aventura com uma dama bonita - falei.

Pelo canto do olho, vi Damon cerrar o queixo, e eu sabia que ele reprimia o impulso de se alimentar. Não reprima, pensei, esperando com fervor que Damon bebesse sangue ao seguirmos a mulher pelas ruas de paralelepípedos.

-Chegamos - disse ela, usando uma grande chave para destrancar a porta de ferro batido de um solar azul-violeta no final de um beco sem saída.

A casa era bem-conservada, mas as construções vizinhas pareciam abandonadas, com a pintura descascada e jardins transbordando de ervas-daninhas. Podia-se ouvir o som animados de um piano em seu interior.

-È meu pensionato, Miss Molly's. A diferença é que neste pensionato demostramos a verdadeira hospitalidade, se estiverem dispostos - disse ela, piscando os longos cílios. - Vamos entrar?

-Sim, senhora - Empurrei Damon pela porta, entrei e a tranquei.


sede de sangue -diarios de Stefan -vol.2Where stories live. Discover now