Memória

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Ao entrar no carro, penso no trânsito que vou encarar. Os gestos são automáticos. Giro a chave, ligo o som, o ar (são só 6:40h, mas estou no Rio de Janeiro), manobro pra sair da garagem, desvio das pilastras, subo a rampa, aciono o portão, tudo cronometrado e automático. O pensamento nas contas pagas e a pagar. IPTU, IPVA, IR pagos ... faltam as multas vencidas e... qual a outra que não paguei? Pista livre, aproveito o trecho sem engarrafamento. Acho que dessa vez vou chegar no horário. A mente viaja por um instante e começo a me lembrar de um tempo em que tinha menos dinheiro e menos responsabilidade. Lembro... as tardes de verão jogando bola na chuva de pingos grossos e o cheiro de terra molhada, ...as noites de descobertas e amor inconsequente, na verdade, paixões bimestrais que duravam o tempo que as músicas ficavam nas rádios, ... a conversa com meu pai, quando pela primeira vez ele notou que eu era um adulto e falamos como amigos ...a sinuca aonde ia com os amigos e bebia algo que achávamos ser vinho ...ah bons tempos! Então me pergunto quando foi que perdi o controle da minha vida, ou melhor, quando passei a controlá-la demais ...em que momento passei a ser escravo das obrigações e do tempo, sem pensar na minha vontade? Ao enumerar tais lembranças, que sempre me foram caras, percebo também que não tinham nada de extraordinário. Penso que se, naquela época, me contassem como seria minha vida hoje, eu, provavelmente, sentiria a mesma "inveja" de mim mesmo. Conclusão: persegui a felicidade como um cachorro que tenta pegar o próprio rabo. A reflexão me fez bem. De hoje em diante... Desvio da moto que atravessa... o volante se choca contra meu peito. O cérebro demora a processar. Os objetos se movem dentro do veículo que se parte contra o poste. Meu corpo se desloca violentamente, mas parece câmera lenta. Sou projetado contra o para-brisa. Não sinto dor. Após o estrondo, tudo é silêncio. Cinco segundos após o impacto, sinto-me pairar sobre o acidente e , de cima, vejo o meu carro destruído: perda total, ainda bem que o seg... Lembrei a conta que não paguei: a última parcela do seguro! 

Garrafa de  náufragoWhere stories live. Discover now