Santas transgressões

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Santas transgressões

Digo que vou pra casa depois da escola. Minto. Vou jogar bola num campinho do outro lado da cidade. Como um sanduíche na lanchonete. Caminho apressado porque marcamos às duas e a distância é grande. O lugar é desconhecido e o sol é forte, mas a ansiedade vence o cansaço. Chego ao campo de terra batida mais alto que o nível da rua. As traves de bambus arqueados. Não há linhas de marcação. A bola sai, quando começa a grama. Meu amigo me recebe. Pela sua semelhança como uma tartaruga, ganhou o apelido de Praga em referência ao ajudante de palco da Xuxa. Parece feliz e surpreso de eu ter ido. Ele sabe que minha não deixaria. Tiro a roupa do colégio e boto na mochila. Fico de short e viro a camisa do colégio do avesso. Fico descalço como a maioria. Meu amigo e um outro garoto escolhem o time. Sou um dos menores, mas sou a primeira escolha do meu amigo. Não jogava tão bem pra ser a primeira escolha. Boto isso na conta da amizade. Os times se formam. O nosso é sem-camisa: tiro a minha. Dez minutos ou dois gols: essa é a regra que põe fim às partidas. O jogo começa. De início ninguém me nota em campo. Pior do que não tocar na bola é não ser sequer marcado por alguém. Até que uma bola dividida com a nossa defesa sobra para o meu a amigo que lança pra mim. Ele sabe que, pelo menos, eu corro muito. Ninguém acredita que eu vou chegar, mas eu chego. Cara a cara com o gol. O último zagueiro me persegue sem alcançar. Chuto forte na saída do goleiro. A bola dente de leite bate no travessão de bambu que quase sai das forquilhas e entra. Meu amigo corre até mim e batemos com as mãos no ar. Na terceira partida que jogamos, fui empurrado pela linha de fundo imaginária numa dividida. Caio sobre uma moita. Olho pra baixo e vejo uma lasca de madeira atravessada no peito do pé. Todos vêm olhar. A expressão deles é de espanto. Uns fazem caretas, mas apesar de impressionante é superficial. Não sinto dor alguma. O sangue ainda está quente e eu não deixaria nada me tirar daquele campo. Puxo uma das extremidades da lasca que estão expostas e a retiro por completo. Escorre algum sangue. Eu sigo jogando. Na última partida, na entrada da área, a bola quica na minha frente à meia altura. Eu pego de sem-pulo. Um lindo gol. De desacreditado eu passo a ser o moleque de fora que fez a festa naquele campinho. Me despeço do Praga. Já começa a escurecer quando volto pra casa. No meio do caminho, vejo minha mãe transtornada. Voltou do trabalho mais cedo. Sem saber notícias de mim, saiu a minha procura. Num lugar violento como aquele o medo de algo ruim ter acontecido comigo era até justificável. Ali mesmo começou o esporro e a vergonha na rua. Em casa veio a surra. Depois o castigo. E o saldo? Saldo muito positivo! Tudo valeu a pena! Foi um daqueles dias que uma criança não esquece. Nem quando fica adulta.


Garrafa de  náufragoWhere stories live. Discover now