Universos paralelos

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Agência lotada, senha 576. Penso em sair correndo. Hesito. Data limite e juros de 15% são argumentos irrefutáveis e me obrigam a enfrentar a fila indecente. Sento com resignação. Sentado ao lado, vejo um homem de meia idade que conversa com um rapaz em pé ao seu lado. "... mas, você sabe o que é mais-valia?" O jovem balança a cabeça negando. "É o lucro que as elites ganham explorando o proletariado que vende o único bem que possui, que é sua força de trabalho. "Faz-se um breve silêncio. "Você sabe o que é proletariado?" Outra negativa. "São os trabalhadores pobres." O jovem, balançando o pé esquerdo de impaciência, agora levantava as sobrancelhas fingindo-se grato por receber aquele conhecimento que, na verdade, julgava irrelevante para sua existência no planeta. O homem sentado, notando a ignorância plena do rapaz sobre aquele mecanismo tão óbvio para ele, faz outra pergunta para comprovar sua tese. "Você tem segundo grau?" O jovem então conseguiu traduzir que o segundo grau devia ser o ensino médio, porque era assim que sua mãe falava. Nesse momento, levemente vaidoso, ele responde um sim finalmente. Isso frustra as expectativas do homem que com certeza não havia se dado conta de que na atualidade todos têm ensino médio, inclusive os analfabetos funcionais. De volta ao interrogatório: "Mas, então, você sabe como acabar com a violência?" Outra negativa. O rapaz até achava que sabia, mas já respondia que não para acabar logo a conversa. O homem, por sua vez, não cansava de responder às próprias perguntas: "Acabando com a miséria." O jovem faz uma expressão de "ah ta!", mas o homem não desiste "E você sabe como acabar com a miséria?" Ele certamente fingia ignorar que quanto mais simples parecem as perguntas, mais complexas costumam ser suas respostas e assim elaborava tais questões como se perguntasse sobre o preparo de macarrão instantâneo. Meia hora depois, ouvindo o mesmo monólogo vestido de diálogo, deduzi que a tal palestra, provavelmente, teve seu início quando o incauto rapaz manifestou sua intenção de votar num desses candidatos linha dura que prometem acabar com a violência usando um porrete. Quando eu já torcia para que um raio atingisse a agência, pondo um fim àquela ladainha, o homem tem sua senha chamada e se levanta, aperta a mão do jovem, dizendo "pense nisso, reflita sobre o assunto" Diz isso , como quem manda um paraplégico andar, argumentando consigo "mas é só até a porta." Ele se dirigia ao caixa vitorioso, quixotesco, por passar a outro o cajado da sabedoria. O jovem respirava aliviado, porém com o falatório não sabia onde havia colocado a senha. Nesse momento, alheia ao imediatismo do porrete ou à letárgica reversão do processo histórico de desigualdade, eis que a violência rompe a porta da agência bancária munida de fuzis: Isso é um assalto!   

Garrafa de  náufragoWhere stories live. Discover now