Noite na Lapa

151 6 2
                                    

Era madrugada. Já havia feito meu itinerário etílico por toda a Lapa. Noite estranha de chuva fina e rara no Rio. Não sei por que, diferente de outras noites, mal troquei palavras com alguém do sexo oposto. A mulher que vendia chicletes não contava. A Lapa sempre foi pra mim um conjunto de prazeres e nisso incluo samba, bebidas e mulheres, não necessariamente nessa ordem. Aquela noite parecia se encaminhar para um zero a zero atípico. Digo isso não por me achar um conquistador, pois nunca fui, mas porque aquele era um lugar aonde as pessoas iam mais abertas para o novo, para o desconhecido, mais prontas para encontros, mesmo que superficiais, encontros de uma noite que fosse. E, naquele tempo, esse era meu propósito. Mas até quando não rolava nada, mesmo assim, a atmosfera daquele lugar sempre me encantou. A cara do Rio Antigo me dava uma saudade quase inexplicável. Os mais exotéricos poderiam dizer que era saudade de alguma vida minha passada. Eu, mais cético, me contento em pensar que é lembrança de alguma leitura passada e costumo ter essas saudades do que não vivi. Já estava indo ao estacionamento até que cruzei com um casal. Troquei olhar com a mulher, que era atraente. Como havia bebido , não me preocupei muito em disfarçar para que ele não notasse. Na verdade, ignorei-o. Além de ser sensual, ela retribuiu meu olhar e cobriu minha aposta. Naquela época, apenas um desses fatores já era motivo pra "ir pra cima", às vezes até menos. Após passar por eles continuei olhando, e ela também, fixa em mim. Parei. Um pouco adiante ela estacou, fazendo com que ele, que a trazia pela mão, também parasse. Fiquei perplexo. Procurei câmeras escondidas, podia ser uma pegadinha. Mas não era. Ao me aproximar, vi que ele era mais alto que eu. Isso me preocupou. Ela era realmente linda. Parecia ter uns vinte, mas seus olhos enigmáticos contradiziam sua pouca idade. Fui até eles e simulei uma naturalidade que nem eu entendo até hoje. Eu estava "chegando" em uma mulher acompanhada. Loucura! Olhando então com mais atenção, notei nele trejeitos discretos, mas que nesse segundo momento me fizeram concluir que ele era gay. Tudo se esclareceu e eu respirei: Eram amigas caçando juntas. Cheguei perguntando o nome dela (que ideia ridícula) e dizendo que não pude deixar de notar que ela era linda. Trocamos beijos e apertei a mão dele. Instintivamente, caminhamos até um bar com cadeiras na calçada, como eu gosto, viradas sempre de frente pra rua, nunca de costas. Pedi uma mesa, puxei a cadeira para ela no meio. O amigo numa ponta e eu do outro lado. Aproximei tanto minha cadeira da dela que podia sentir seu hálito. Essa ousadia boto na conta da hora avançada. Trocamos informações iniciais e soube que eram ovelhas desgarradas. Ambos de São Paulo: ele do interior, fato que seu sotaque já me mostrara, e ela da capital, mas sem o sotaque estereotipado do " não to entendêindo ". Explicaram as circunstâncias em que se conheceram por uma amiga em comum, porém isso não me interessava. Meus olhos percorriam seu rosto, incessantes, e notei que isso a deixava sem ação. Percebi que era a maquiagem que lhe dava uns vinte anos. Na adivinhação das idades chutei dezessete. Ela respondeu dezoito. A mentira estava estampada em seu rosto. Fingi acreditar: era mais conveniente. Senti uma vontade incontrolável de tocar seu rosto, e o fiz. Isso a deixou desconsertada, mas não a ponto de afastar minha mão. Só perguntou: o que foi? Não respondi. Ela entendeu. De canto de olho flagrei seu amigo vigiando minhas ações enquanto tagarelava sobre suas habilidades com a tecnologia e sua fluência no inglês. Que pedante! Aquilo já me irritava. Ela foi ao banheiro, então pude olhar mais detidamente pro seu corpo e pensei: Essa noite ... Por alguns segundos esqueci que ele tinha ficado na mesa comigo, quando voltei da visão maravilhosa daquele vestidinho preto desfilando promessas, tive um choque de realidade. Isso porque na minha direção vinha um colega do escritório num grupo com várias pessoas. Era Edgar com esposa, o cunhado e o sogro. Ele vinha mostrar a noite do Rio para a família da esposa, que era mineira. Como explicar? Às duas da manhã, em uma mesa na Lapa sentado com um gay. Depois pensei: não tenho que explicar nada... Ele podia ser um amigo... Ele podia nem ser gay... Cadê essa garota que não chega do banheiro?! O ar de riso do Edgar mostrava tudo. A difamação no escritório era certa. Puxei assunto, tentei esticar a conversa, mas o filho da mãe do Edgar: Já vamos, não queremos atrapalhar. Mesmo após minhas súplicas, ele se foi. E foi só o miserável virar as costas, para ela voltar mais bonita que quando saíra. Já passava das três: momento de definição. Só agora ele vai ao banheiro. Aproveito a deixa para um beijo, seguido da proposta sussurrada em seu ouvido. Chamei-a pra sairmos dali. Ela disse que não queria deixar o amigo ir só para casa. Prestativo e provavelmente salivando frente ao prato, concordei em deixá-lo em casa antes de seguirmos outro rumo. No carro, descubro que o pernóstico está morando "temporariamente" em uma favela à beira da Av. Brasil. Sobrevivi à experiência de parar o carro naquele lugar sombrio e agradeci a todos os santos a façanha de não ter sido assaltado. Toquei para um motel que se não era bom, era ao menos passável. E assim a noite transcorreu até melhor do que as expectativas. Depois daquele encontro tivemos outros dois. O sexo era bom, mas era só isso. Nessas oportunidades, também pude conhecer um pouco dessa garota( dezesseis anos, na verdade) que brigou com a família por um namorado e por ele saiu de casa. Apostou suas fichas e perdeu. Viu que errou, mas gostou da liberdade. Não podia mais voltar pra casa, pois já não era a menina que havia fugido. Então veio pro Rio morar com uma tia. Tão nova e com tanta história. Não entrou em detalhes, mas deve ter passado maus bocados. Naquele momento entendi o que seus olhos diziam. Quanta coisa a partir de um encontro?! Às vezes, imagino quantos outros encontros improváveis e inesperados já aconteceram nas noites da Lapa. 

Garrafa de  náufragoWhere stories live. Discover now