Sete Irmãos

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Eram sete irmãos nordestinos que vieram como tantos outros para o Rio tentar a vida. Entre eles a caçula das mulheres, minha avó materna Virgínia. Ao chegarem aqui, tomaram rumos diferentes. Trabalhos, casamentos e acasos se encarregaram de espalhá-los pela cidade. Vó Virginia não era de muitas frescuras ou sentimentalidades, mas, como a maioria das avós, me mimava. Mais que isso, ela fez parte da minha criação. São vários os momentos que recordo a minha infância em que ela está presente. Eu adorava suas histórias. Ela não se apropriava da narrativa. Não completava as histórias perdidas na memória com cacos de sua imaginação. Deixava a história bruta, às vezes até difícil de compreender. Se eu pedisse mais explicações, ela dizia: Sei lá, foi assim que me contaram. Isso dava à história um quê enigmático que me fazia pensar e repensar. Para cada situação, ela guardava um provérbio. Mas os provérbios nordestinos eram os melhores. Lembro quando ela dizia: Quem com 20 não barba; com 30 não casa e com 40 não tem (dinheiro): Não barba, não casa e não tem! Outro dia mesmo, eu pensava sobre isso. Segundo o ditado, passei da idade de casar sem fazê-lo, fato que não me preocupa. Porém também já passei de idade ficar rico, infelizmente, sem esse êxito. Graças a minha barba, ainda que rala, surgida depois dos vinte, eu contrario a teoria da minha avó. Sendo assim, ainda posso ser milionário. Por outro lado, também posso vir a me casar e depois perder quase tudo num divórcio. Melhor deixar pra lá. Voltando à minha avó, lembro-me ainda do alfabeto que ela aprendeu na escola e me ensinou. Eu gostava por ser diferente do meu. Tanto que decorei, como se fosse uma versão da língua do P que poucos sabiam. Era mais ou menos assim: a, b, c, d, e, fê, guê, h, i, ji, k, lê, mê, nê, o, p, q, rê, si, t, u, v, x, ipsilone, z. Só bem depois vim a entender por que chamavam aquele caminhão cara chata de fenemê. Era um FNM da Fábrica Nacional de Motores, lembrança da Era Vargas. Dona Virgínia não era pessoa delicada, nem nos gestos, nem nas palavras. Dava respostas secas e cortantes. Nós chamávamos de "fora". Ela negava. Dizia que não tinha falado nada demais. Mas isso era só a casca. Na verdade, fazia tudo pra me agradar. A casca era dura como a da mangaba. Nunca vi nem provei a tal fruta, mas sei que sua casaca é dura pela expressão que minha avó usava para falar do cabelo do meu pai que era liso, porém muito duro e grosso: cabelo de espetar mangaba. Quando eu perguntava: Vó, mangaba parece com o quê? Com mangaba, ora! Parece que ainda a vejo sentada sobre um utensílio que ela chamava de marisco. Uma tábua contendo, na ponta, uma concha de metal de borda serrilhada. Nele, Vó Virgínia ralava o coco para fazer bolo de aipim, manjar e cuscuz branco. Simplesmente, os melhores que qualquer mortal já provou.

Essa coisa de contar histórias, essa tradição oral, parecia mal de família. Aluísio, irmão mais velho de Vó Virgínia era mestre nisso. Eu o chamava de Tio Lu, como minha mãe fazia. Quando ele ia passar uns dias em nossa casa, e isso era raro, eu esperava ansioso o fim da tarde, hora em que ele sentava e contava histórias que eu adorava ouvir. Eram frequentes aquelas que exaltavam as qualidades do Nordeste, que eles chamavam Norte. Assim, vento fresco, lá em casa era "ventinho do Norte". Lembro de uma história em que devido às características únicas do solo nordestino, certa vez, brotou numa fazenda um pé de alface tão grande que foi necessário um caminhão do exército e quatro soldados para erguê-lo do solo. Dito isso com a cara mais séria do mundo. Eram narrativas das mais variadas, que partiam do fantástico até definições científicas , como a seguinte pérola de uma história de onça pintada: ...porque você sabe que onças, tigres e gatos são da mesma família, já o cachorro é da família dos leões. Acho que nele eu gostava mesmo era da firmeza das afirmações.

Tio Lu era o tipo de pessoa orgulhosa e com manias de grandeza. Ele queria ser dono, patrão ou ter qualquer título que demonstrasse alguma superioridade. Seu sonho confesso era ter um busto de bronze em uma praça pública. Graças ao trabalho duro, conseguiu fazer um bom dinheiro confeccionando e vendendo imagens religiosas em gesso. Chegou a ter fábrica e um grande número de empregados. Lembro de brincar com seu neto Lázaro, nos corredores de um depósito enorme, sombrio, misterioso e assustador para uma criança, repleto de imagens de santos e orixás diversos. No entanto, Tio Lu não soube lidar com esse dinheiro e acabou perdendo tudo. No auge, não se preocupou em guardar reservas para tempos piores. E eles chegaram. Na crise, quando pagava aos funcionários, chegava a ficar sem nada para ele e a para família que sofria com a inconstância de situação financeira. Certa vez nós fomos à casa nova do Tio Lu, em Santíssimo, zona oeste do Rio. À frente da casa havia um lago artificial. Nunca tinha ido a uma casa com lago. Mas lembro de ouvir que já naquela época eles passavam por grandes dificuldades. O lago era em forma de "L" feito de cimento bem áspero. Falo da aspereza, porque o lago, feito para peixes nadarem, virou piscina para os muitos filhos e netos do Tio Lu e para quem chegasse. Eu me esbaldava nos banhos. Uma farra naquela água cheia de outras crianças. O problema era depois, com o corpo todo ralado, aguentar o banho com mercúrio cromo e o esporro da mãe "parece que nunca viu água". Mesmo assim valia a pena. Tio Lu, rude, inflexível e amargo pela perda do seu "império" brigou com quase toda a família e terminou praticamente na miséria, amparado por uns poucos filhos que cuidaram dele. Lembro-me ainda de visitá-lo doente. Acometido de um mal misterioso que deixava a pele esticada , escura e todo o corpo com um inchaço assustador. Digo, mal misterioso para quem não tinha acesso a diagnósticos confiáveis.

Garrafa de  náufragoWhere stories live. Discover now