Cegueiras Incompatíveis

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Eles se conheciam havia pouco tempo. E tudo aconteceu graças a um site de relacionamentos. Ele contava seus cinquenta e era cego, devido a um acidente dez anos atrás. Ela era bem mais nova e enxergava perfeitamente. Embora eles não soubessem, essas não representavam a maior diferença entre esses apaixonados. No último encontro deles, ele sugeriu que ela ficasse vendada, para sentir como ele percebia o mundo. Ela topou. Ficou toda enrolada. Deu alguns tropeções e no fim achou ótima a experiência e resolveu retribuir fazendo algo do gênero. Então ela propôs: " Vou levar você a um evento de uns amigos meus. É algo que eu adoro e hoje mesmo eu estava pensando como não conversamos sobre isso antes. Bom, não vou dizer sobre o que é. Você terá que adivinhar" Ele aceitou prontamente. No fundo achou que se sairia muito bem, graças à sua perspicácia e ao fato de estar acostumado a enxergar pelos ouvidos.

Ela o levou a uma festa promovida pelo Canal Brasil que estava entregando prêmios aos melhores curtas-metragens nacionais. Ela era uma entusiasta do cinema brasileiro. O homenageado daquele ano foi Glauber Rocha, o pai do Cinema Novo, cujo rosto estava sendo projetado na enorme parede nua situada atrás da mesa onde o casal e os amigos dela estavam sentados. Ele ria e conversava com ela, mas seus ouvidos estavam atentos a tudo, inclusive quando alguém comentou:

- "Lavoura Arcaica" sim, é bom, é produção nossa, agora aquela "Colheita do Mal", por exemplo, coisa de americano, uma pobreza só... – ele deduz consigo, como se pescasse um peixe grande:" Lavoura, colheita... é papo de fazendeiro. Nunca pensei que ela se interessasse pelo agronegócio, mas tem gosto pra tudo."

Tudo ia muito bem até que um convidado se dirigiu a ele:

- "E o Glauber hein?!" Os olhos do homem brilhavam.

Sem perceber a intenção do homem ao puxar a conversa e estranhando a mudança brusca de assunto, ele soltou a seguinte frase:

- Que Glauber?Glauber Rocha? Glauber Rocha é uma merda!

- Todos da mesa interromperam suas conversas e olharam para ele, que nem notou e continuou:

-"Uma câmera na mão e uma idéia na cabeça" ... muita maconha na cabeça, só se for!

Agora, percebendo o silêncio, pensou;"minha frase causou impacto" - com isso foi ficando cada vez mais eloquente:

- Escolher entre Cinema Novo e Pornochanchada é uma tarefa das mais difíceis, mas ainda assim eu acho que fico com a Pornochanchada, porque nela pelo menos eu posso ver uma finalidade: Se você tiver muita imaginação e um tesão acima da média, pode se masturbar. Para isso é claro precisa abstrair as péssimas atuações e a falta de naturalidade dos atores.

Nesse memento até os músicos pararam de tocar. Ainda assim ele prosseguiu:

- Aí tem gente que vai dizer: "Ah, mas a ditadura não deixava passar nada..." Porra, então vai vender pastel, mas não faz filme! O pior não é o cara fazer filmes sem sentido. O triste é ver o meio artístico batendo palma pra maluco dançar. Depois eu é que sou o cego! – gargalhou.

As pessoas foram uma a uma se retirando da mesa indignadas. Houve até um mais exaltado que fez menção de ir em direção ao "sem cultura", mas foi contido por um amigo e preferiu se retirar também.

- Outra coisa que eu queria entender é o que o pessoal do nosso cinema tem contra as falas. Perece cinema mudo, minutos e minutos sem uma palavra. Se quando eu enxergava eu não entendia os filmes do Glauber, agora, na situação em que me encontro, nem que eu quisesse. Seria um complô contra nós cegos?!

Refletiu mais um pouco, pôs a mão no queixo e falou:

- Eu acho que, se tudo continuasse da Atlântida fazendo aqueles filmes bobinhos no padrão USA, a gente já teria descoberto a nossa cara no cinema. Será que ninguém falou pra ele: O povo não gosta dessa merda! Também, se falou, acho que ele respondeu: "O povo não consegue compreender a arte." Parece um conceito de que a arte e o gosto popular não podem andar juntos.

Realmente empolgado, ele ainda arrematou:

- E tudo em nome da cultura brasileira, defendo o Brasil da aculturação norte-americana. Na verdade ele falava em nome de meia dúzia de intelectuais que só conheciam o Brasil pelos livros. Digo e repito: A ditadura e o Cinema Novo são co-responsáveis por um longo período de estagnação do cinema nacional. Ah, e depois veio o Collor é claro.

Só parou porque sua garganta já estava seca. Enquanto bebia água, pôde notar o quão longo era o silêncio em seu redor e perguntou:

- Amor, por que esses agricultores não falam nada na nossa mesa?

- Amor?

- Amor?


Garrafa de  náufragoWhere stories live. Discover now