Poucas palavras

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               O sol, a praia, aquela gente toda. Gente falante. Gargalhando ou discutindo, todos conversavam. Rosângela não. Ela só observava. Havia até aquelas pessoas que não precisavam de alguém pra dialogar e conversavam consigo mesmas. Era caso do negro forte que se queixava do calor com o saco de gelo que trazia às costas. Uma mãe conversava com seu bebê, apresentando o menino ao calor abrasador do verão carioca. Ele, indiferente ao que a mãe dizia, apenas contemplava as pessoas que passavam. No máximo tentava puxar algum cabelo mais chamativo que passasse perto de sua mãozinha. A diferença entre a mudez do bebê e a de Rosângela era que se o bebê soubesse falar, ele falaria. Rosângela não apresentava nenhum problema cognitivo. Nada estava errado com seu aparelho fonador. Ela simplesmente não sentia vontade de falar. Quando se esforçava para puxar conversa só pra quebrar o silêncio que incomodava visivelmente as pessoas que a cercavam numa fila de banco ou no elevador, por exemplo, ela não se sentia confortável. Além do que suas tentativas eram vãs. Comentários sobre o clima ou a crise financeira que não rendiam dez segundos de contato verbal. Era como se ela pedalasse para fazer um caminhão subir uma ladeira. Naquele dia, veio à praia com outras três jovens, entre elas Raquel, sua colega, ou melhor, Raquel era o mais próximo que Rosângela teve de uma colega. Ela não entendia o silêncio de Rosângela, mas aceitava a companhia da esquisita que morava no seu prédio. "Raquel, o que é que ela tem? É mau hálito?" Debochavam as meninas em sussurros. Raquel dizia às amigas que saía com ela por um misto de pena e insistência de sua mãe para socializar a vizinha. Na verdade, não era bem pena, o que já seria um sentimento ruim. Raquel queria se sentir superior a alguém. Ser mais descolada. Embora tivesse 21, ainda precisava de autoafirmação e a garota muda era companhia ideal para quem quisesse sobressair. Rosângela também não tinha nenhum apreço por Raquel. Ela a achava uma pessoa superficial e cansativa, como as amigas que a acompanhavam naquela manhã. Os assuntos que elas puxavam eram o cúmulo do lugar-comum, totalmente dispensáveis. Se ela falasse alguma coisa com aquelas meninas seria para expor sua teoria: "Se alguém fala, quando não tem o que falar, provavelmente esse alguém só poluirá o silêncio." Mas não valia a pena nem dizer isso. Rosângela só saiu com o grupo, para agradar seu pai que não achava normal sua introspecção. "A vida não é só trabalho, filha. Você precisa sair, fazer amigos, conversar, ...namorar..." Internamente, Rosângela ria daquilo tudo e pensava: "quando um pai insiste pra filha namorar é porque as coisas não vão bem" Ela ria e não ligava. Estava bem consigo mesma. Teve alguns namorados, nada de muito relevante. E até nesses namoros, o forte nunca foram as conversas. Na praia, as meninas procuravam o lugar mais badalado. Era um quiosque, cujos frequentadores eram em sua maioria moradores locais. "Aqui é bom, porque o ponto de ônibus fica bem longe e isso afasta os farofeiros!" Rosângela não aguentava mais aquele papo esnobe de patricinhas que nunca souberam o que era entrar num ônibus nem para passear, quanto mais para trabalhar. Elas pararam no tal quiosque. Rosângela, monossilábica, disse à Raquel que iria dar um mergulho. Antes de virar as costas notou e ignorou os cochichos. Ela não queria entrar no mar, mas apenas se livrar das outras. Escolheu um ponto na areia, desenrolou a canga da cintura e a estendeu. Sentou-se, sem perceber, bem próximo a um pequeno saco de pano com pertences dentro, fechado com um cadarço que o franzia. Quase imediatamente, o dono do material retornou da água todo molhado e se aproximou. Olhou para Rosângela e fez um cumprimento com a cabeça ao qual ela retribuiu com um sorrisinho. Ele se sentou ao seu lado. Parecia jovem. Uns vinte e cinco talvez. Rosângela o achou bonito. Não bonito do tipo atleta, musculoso, depilado. Estava mais para intelectual, magro, com pelos e até uma barba mal cuidada, mas que fazia um conjunto interessante aos olhos de Rosângela. O perfil cult dele se completou, quando puxou da sua sacola os óculos de grau. Eles ficaram lado a lado, os dois contemplando o mar por uns vinte minutos. De vez em quando, um olhava de canto de olho para o outro que percebia, mas seus olhares não se cruzavam. Para ela, era questão de tempo que ele puxasse algum assunto, mesmo que idiota, só para quebrar o gelo. Mas ele não o fez e isso a surpreendeu positivamente. Então um vento inesperado arranca o chapéu da cabeça de Rosângela. Prontamente, ele se levanta para pegá-lo. A cena é engraçada, pois o chapéu escapa das mãos dele que continua a perseguição como se corresse atrás de uma galinha fujona. Finalmente, ele apanha o chapéu e entrega a ela que lhe retribui com um "obrigada" demorado e sonoro ao qual ele responde com um simples gesto cordial de cabeça. Ela pensa: " Nossa! Esse é dos meus!" Depois de mais uns vinte minutos sem uma palavra, ela reconsidera se não seria melhor que ele tivesse puxado um assunto qualquer para estabelecer o diálogo. Não pela conversa em si, mas porque se ele não o fizesse, ela teria que fazê-lo, pois já estava ficando interessada por todo aquele silêncio. Nessa hora, passa uma mulher, trazendo uma sacola de latinhas que ela parecia estar catando, numa das mãos, e a na outra carregava um menino. Eles pareciam, realmente, muito necessitados. Eis que a mulher chama o filho e aponta para o homem misterioso ao lado de Rosângela; " Olha, filho, é o tio da ONG!" Os olhos do menino se iluminam e ele balança as mãos freneticamente num aceno desajeitado. O homem acena de volta para ambos com um sorriso no rosto. Não era um cumprimento por pura educação. Ele parecia realmente feliz por encontrá-los ali. Rosângela se admira: "Além de tudo o cara é voluntário em uma ONG, ajudando crianças carentes!" Depois disso, ela toma coragem, vira-se para ele e diz: "Você vem sempre aqui?" O homem a ignora. Aquilo a deixa inconformada, no entanto ela põe a culpa no vento forte que pode ter dispersado suas palavras. Por isso ela insiste como nunca havia feito antes. Ela toca em seu ombro e repete a pergunta. É aí que ele percebe que ela tentava lhe dizer algo. Ele também se vira para ela, toca no próprio peito, balança o dedo indicador, fazendo sinal de "não", depois toca nos ouvidos e em seguida nos lábios. Rosângela se pergunta: "Como será que eu digo em libras que eu estou apaixonada?"


Garrafa de  náufragoWhere stories live. Discover now