Garrafa de náufrago

Formiga vs Cigarra em tempos de polarização

Na sala dos professores...

- Pessoal, a diretora pediu que nós discutíssemos sobre a apresentação teatral dos alunos, pois só faltam dois meses. Eu e Márcia, como coordenadoras, estávamos pensando que as crianças poderiam encenar a fábula de Esopo " A Formiga e a Cigarra" . O que vocês acham?

O professor de educação física dá o pontapé inicial à discussão:

- Pra mim, a cigarra é uma vagabunda e a formiga é workaholic. Elas não são exemplo pra ninguém!

A professora de história desconsidera o comentário:

- Todos sabem que nas fábulas, os animais são utilizados para atrair as crianças para a história, mas na verdade são os comportamentos humanos que são postos em questão. Fábulas são formas de doutrinar as crianças para agirem de acordo com a vontade do sistema político vigente. Eu sou contra.

O professor de matemática rebate: - Ah, lá vem você com essa! Você também acha que alguém maltratava os felinos por causa do "atirei o pau no gato"?! Fala sério! E mesmo que nesse caso influencie, qual é o problema disso? Qual é o problema de se querer que alguém seja trabalhador?

A de história ironiza: - Pra alguém que defende tanto o trabalho, é estranho você ter aderido à greve que durou metade do ano letivo, não acha? Greve que, por sinal, eu organizei e que você abandonou, convenientemente, assim que começaram a cortar nosso ponto...

O de matemática tenta se justificar: - Agora a greve é sua? Eu saí, porque o sindicato "de vocês" não nos protege..

Uma coordenadora intervém:

- Professores, mantenham o foco na peça, por favor!

- Voltando à questão - retoma a palavra a professora de história- essa fábula prega o capitalismo e por consequência a falta de solidariedade e o acúmulo de capital. As formigas trabalhavam mais do que precisavam.

- Eu pensei – retruca, indignado, o professor de matemática - que elas trabalhassem muito no verão, porque no inverno era impraticável. E não vejo por que dividir o fruto do trabalho com quem não fez nada. Daqui a pouco você vai querer que as formiguinhas façam uma vaquinha pra pagar bolsa-família pras cigarrinhas...

O professor de educação física diz rindo: - Vaquinha não! Já tem muito bicho nessa história! Ele é ignorado novamente pelos que duelavam.

A professora de história: - Não esperava outro argumento vindo de você. Daqui a pouco vai querer prender a cigarra por vadiagem, como nos anos da ditadura!

O de educação física: - Eu sempre achei que a cigarra do livro tinha cara de maconheira! Após o comentário, do qual ninguém acha graça, o debate acalorado prossegue. Com a palavra a professora de história:

- Falando assim, até parece que só o que a formiga faz é trabalho.

Desafiador, o professor de matemática responde: Claro que é! A cigarra não fazia nada e ainda ficava rindo do esforço da formiga. Ficar cantando é trabalho onde?

- Fique sabendo que meu marido é músico! Você quer dizer que ele é vagabundo também? Não esqueça que esse foi apenas um episódio da vida da cigarra. Mas ninguém vê as horas que ela gastou estudando música no Méier, acordando às cinco da manhã, pegando ônibus lotado, o dinheiro da passagem contado... – os olhos da professora parecem marejados.

- Ah, então tem que ter sacrifício pra atingir os objetivos? Você não era contra a moral da história que se baseava no esforço capitalista?

- Vou ignorar o que você diz. Associar o trabalho artístico à vagabundagem também faz parte da estratégia do capital, pois os artistas são veículos de cultura que podem desestabilizar o sistema capitalista.

- Engraçado, esses mesmos artistas podem receber subsídios do governo e ficarem quietos diante dos desmandos políticos, fazendo arte, enquanto o povo...

- Professores, assim não dá! – intervém uma das coordenadoras – Vejo que teremos que mudar o tema. Já sei! Vamos tratar de um tema religioso na apresentação, que eu acredito que será mais tranquilo. Que tal "A Vida de Jesus Cristo"?

- O que pregava o conformismo na terra em troca do céu após a morte?

- Quem? Aquele comunista?