O muro

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- Abaixa que essa é das grandes! - O homem, que ao ouvir o alerta se jogou no chão, agora limpa as mãos, enquanto se levanta e agradece ao outro por ajudá-lo a esquivar-se de um pedregulho. Num canto da mesma praça, dois homens trabalham na destruição de um banco de concreto. Enquanto um dá golpes de marreta que transformam o assento numa pilha de pedras, o outro faz a segurança do primeiro, segurando sobre as cabeças de ambos uma placa também arrancada daquela praça que agora mais parece um campo de batalha. Mais à frente, outros três, vendo o sucesso da demolição, correm para pegar mais munição. Já remuniciados, eles voltam a se aproximar do grande muro e de lá arremessam as pedras o mais longe que podem.
Ninguém se lembra bem quando aquele muro foi erguido, só se sabe que foi rápido. Aconteceu da noite pro dia. Muitos diziam que foram as próprias pessoas do lado de cá que o construíram para se proteger das do lado de lá. Alguns poucos, no entanto, achavam ter visto operários usando uniformes. Acontece que, depois da construção grandiosa, as pessoas se sentiram mais protegidas. Os inimigos, a partir dali, não andavam mais entre eles, estavam do outro lado. Proporcionalmente à sensação de acolhimento, do espírito de grupo que se formou do lado de cá, também aumentava o ódio pelo grupo do outro lado. Principalmente, quando uma das pedras atiradas por eles fazia uma vítima deste lado. A comoção era geral. Gritos de ódio, juras de morte eram proferidas. Em momentos assim, com frequência surgia um líder carregado nos ombros por outros homens comuns, homens que enxergavam nele um símbolo de suas crenças, depositavam nele sua esperança. Alguém que prometia eliminar aquele grupo de monstros que habitava o outro lado do muro. Havia quem dissesse que entre esses apoiadores havia funcionários daquele líder. Mas de que isso importava? Ele era idolatrado.
Certo dia, um homem foi visto cruzando a praça, equilibrando-se sobre o muro. Ele andava sem pressa, embora se esquivasse ocasionalmente das pedradas que zuniam de ambos os lados. Curioso, um homem se aproximou , olhou para o alto e perguntou desconfiado:
- Você pertence ao outro lado?
- Não.
- Então desça, venha pra cá e pegue uma! - O homem esticou o braço oferecendo uma pedra ao equilibrista.
- Reconheço que deva ser mais confortável aí embaixo, mas também não pertenço ao seu lado.
- Como assim?
- É que eu não pertenço a lado algum.
- Quer dizer que você é um "em cima do muro" mesmo?!
- Na verdade, apesar de caminhar sobre ele, não sou um "em cima do muro". É mais preciso dizer que estou acima do muro e desta posição enxergo pessoas sendo enganadas dos dois lados. E, a propósito, guarde sua pedra. As minhas eu trago nos bolsos para atirar nas pessoas certas.

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