Lua Minguante I

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Cerração

A manhã de sexta-feira despertou misteriosa. Uma cerração cobria a paisagem. Rebeca, pela janela, observava aquela nuvem espessa que impedia qualquer visibilidade da realidade. O despertador anunciou seis horas da manhã, mas ela já estava acordada havia muito tempo.

Foi praticamente impossível dormir naquela noite, pois, por várias vezes, ela escutou os soluços da mãe no quarto ao lado. Seu pai não dormira em casa. Ela quis se aproximar, tentar consolar a mãe, contudo Regina simplesmente a impedia de entrar no quarto. Negava a qualquer custo que algo de errado estivesse acontecendo.

− Vão para a escola. Está tudo bem... Seu pai me enviou uma mensagem pelo celular, dizendo que dormiu no sítio do tio de vocês – disse Regina, sem abrir a porta do quarto.

No trajeto até o colégio, o nevoeiro ia vagarosamente se dispersando. O silêncio entre os irmãos era doído. Cada qual mergulhado em seus pensamentos. Até que a lua, quase transparente, sobressaltou no céu azul. Rebeca sentiu um frescor atravessando seus músculos, pois se viu livre do sufocamento daquela cerração e pôde ver a lua minguante já tão fina, anunciando que estaria nova à noite.

− Covarde! – gritou Caio, enfim. – Tomara que nunca mais volte.

− Eu não sei...

− Não sabe o quê, Rebeca? Não sabe que há anos essa família se sustenta na mentira? Eu cansei. Não aguento mais respirar o ar daquela casa.

− O que nós podemos fazer, Caio? A mamãe finge que nada está acontecendo. Eu queria tanto que a vovó estivesse por perto...

− A vovó? A mamãe só faria o contrário do que a vovó dissesse. Aliás, não há mais nada o que dizer: o papai é um babaca e a mamãe é uma sonsa e ponto.

Infelizmente, Rebeca não podia discordar do irmão. Naquela altura dos acontecimentos, a covardia em encarar a realidade ou tomar uma decisão partia dos dois lados. Não havia nada que pudessem fazer a respeito.

− Eu não vou ser capaz de suportar isso em silêncio... Não vou... – disse Caio.

A mudez tomou conta da atmosfera. Não havia mais nada o que dizer. Então, eles viram Marcos, Lavínia e Gustavo conversando na esquina do colégio. Caio foi surpreendido por um suspiro intenso e longo, que invadiu seus pulmões, pois Lavínia parecia poder despertar seu peito dolorido.

− Oi, pessoal – falou Rebeca.

Marcos e Gustavo vieram cumprimentá-la ao mesmo tempo, e, naquele embaraço, Gustavo recuou. Aquilo, de certa forma, até os beneficiou, pois, sendo o segundo a abraçá-la, não seria vigiado pelo irmão, que já se distraia cumprimentando Caio.

Aquele abraço foi reconfortante para a garota, tudo o que ela poderia desejar naquele momento. O estranho é que aquele descompasso em que seu corpo ficava quando via Gustavo deveria ficar ainda mais intenso na hora do abraço, mas não. Ela sentiu como se ele fosse seu fio terra, descarregando toda a energia de uma só vez. Pena ter durado tão pouco.

− Foi bom termos nos encontrado. Eu ia entregar o livro que te prometi ao Marcos, mas já que nos encontramos... – Rebeca falou enquanto retirava da pasta um exemplar de Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector. − Espero que goste... Mesmo que seja obrigatório para o vestibular.

Gustavo tocou nas pontas dos dedos gelados de Rebeca ao pegar o livro. Notou que seus olhos estavam avermelhados.

− Você está bem? − Rebeca sorriu e acenou um sim com a cabeça.

Os Olhos da Deusa (completo)Where stories live. Discover now