Os Olhos da Deusa (completo)

A Lua Negra III

Lenda e história

Por quase todo o entorno do lago do sítio, havia uma extensão de bosque. Estela considerava aquele trecho de natureza preservada uma verdadeira joia. Os rituais vivenciados dentro do bosque revelavam mistérios e transmitiam pulsações mais puras do que em qualquer outro lugar. Estela caminhou de mãos dadas com Rebeca pelo bosque enquanto o dia adormecia e a noite despertava. Não haveria lua iluminando o céu, apenas as estrelas com o brilho mais intenso.

− A lua negra acontece nas duas ou três noites antes da lua nova. Não aparece sequer um traço de lua no céu. É quando podemos estar mais próximos do nosso eu, de nossos desejos mais íntimos, nossos segredos, nossa força, mas também de nossas sombras, nosso lado mais cruel.

Havia uma clareira no bosque, no chão um punhal que Rebeca identificou como sendo um athame, um cálice, gravetos empilhados e dois vestidos brancos. Estela gentilmente a convidou que vestisse um dos vestidos  brancos enquanto ela vestia o outro. Elas ficaram com os pés descalços sobre a terra. Céu estava negro e pleno de estrelas. Havia uma fogueira que Estela acabava de acender.

A avó sabia que não precisaria dar muitas explicações. Rebeca já abrira sua intuição e lembranças, além de já ter começado suas pesquisas. Estela buscou uma cesta que estava dependurada em uma árvore e a colocou no centro da clareira. Rebeca entendeu que aquela clareira seria seu pouso pelas próximas horas.

− Você está predestinada, minha querida Rebeca. O presságio finalmente riscou o céu, e eu já pensava que não o veria. Os desejos da Deusa são tão mistérios que vamos apreendendo de pouco em pouco. Eu não posso te revelar o que é a lenda por completo porque ainda é um mistério para mim.

Então, Estela invocou os guardiões, gerou o círculo mágico. Pediu que Rebeca deitasse sobre a terra. Estela não precisava dar explicações, Rebeca sentiu que algo começava a se desprender de seu corpo e ser absorvido pela terra, deixando-a mais leve. Eram as energias ruins que a atormentaram aqueles dias e que, agora, descarregaram. Enquanto sua avó seguia com o ritual, ela sentia ondas cobrirem seu corpo e aliviarem angustias e medos. Cenas e sensações que a princípio tomavam sua mente de assalto foram enfraquecendo até desaparecer. Então, sentiu sua alma se desprender de seu corpo e começar a dançar a música da natureza: os insetos, os pequenos animais emitindo seus sons, as folhagens se movimentando, os pássaros despertos por aquela magia, a água do lago que formava pequenas ondas e a voz doce de sua avó.

Caio e Regina chegaram à silenciosa e abafada casa. Estavam a sós. Ela se dirigiu ao altar de Nossa Senhora e rezou. As lágrimas rolavam e o peito doía. Não sabia dizer o que mais lhe perturbava, se perder sua filha para Estela, seu marido para aquela mulher, ou a devoção de seu filho. O rapaz se jogou na cama por fazer, aceitava o conselho de sua avó, talvez apenas por um tempo, talvez apenas em parte.

Gustavo checou o celular mais uma vez, já era noite. Já passava das dez, daqui a pouco iria dormir e Rebeca não lhe deu nenhuma resposta e nem apareceu on-line. "Será que estou sendo feito de bobo? Lavínia tem razão em dizer que Rebeca se insinua para outros caras e que eu não tenho privilégio algum?" Seu celular acusava que ela recebeu e leu sua mensagem. O melhor a fazer era concentrar-se em estudar, já perdera um domingo inutilmente esperando por ela.

Já não era somente a alma de Rebeca que bailava, mas também seu corpo. Sua avó a coroara com flores do campo perfumadas. E acompanhava sua dança tocando um bandolim. Não queriam parar, mas já era hora. Estela estendeu uma tolha branca no chão e serviu os pãezinhos e o chá que só ela sabia fazer. Agradeceram a Deusa antes de cear. Tudo fazia parte do ritual de comunhão com a Deusa através da natureza e dos alimentos sacralizados. Rebeca estava empolgada, falava sobre o livro que estava lendo, sobre o que sentira durante o ritual e sobre Gustavo. Lembrou-se que o deixara esperando e entristeceu.