A Lua Nova II

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As buscas

Rebeca acordou sufocada, o sonho repetia as cenas reais de horror: ela e Gustavo escalando uma árvore. A angústia lacerante de não saber onde estava seu irmão e os outros amigos. O desespero sem rumo de centenas de pessoas. Meia hora consumida como rastilho de pólvora.

Então, Rebeca desafiou as gotas cortantes de chuva e olhou o céu através dos galhos agitados da arvore em que subiram para se proteger da multidão desgovernada. Sentiu os Olhos da Deusa acenderem em suas orelhas. Concentrou toda sua energia e desejo: "Minha Deusa, cesse essa tragédia". Rebeca viu a massa cinzenta se diluir no céu e as estrelas voltarem a brilhar, uma a uma.

A água foi baixando, a multidão se dissolvendo. Levou quase uma hora para que Rebeca e Gustavo pudessem descer da árvore. O cenário de horror se resumia a feridos, desaparecidos, frio e dor.

Quando Rebeca acordou, viu que estava no banco do carro de Gustavo, perto do hospital mais próximo do parque. Lembrou-se que depois que a chuva acabara e a multidão se espalhara, eles caminharam entre os feridos, procurando os outros até chegar ao carro que estava no segundo andar de um estacionamento. Marcos e Priscila os esperavam lá.

− Vocês viram mais alguém? Onde está o Caio? — perguntava Rebeca com a voz embargada.

Eles responderam negativo com a cabeça.

− Thaís, Miguel, Carol, Igor? Ninguém? – Rebeca tentava controlar o desespero, mas se eles estivessem bem já estariam ali, todos sabiam onde estava o carro.

Tentaram usar os celulares novamente, todos fora de área. O estacionamento estava caótico. Os carros congestionados.

− Vamos voltar, ainda podemos achar alguém.

− Ficamos quase uma hora procurando, Rebeca. Vamos para o hospital, podem estar lá – respondeu Gustavo a abraçando.

Rebeca voltou ao presente, olhou para o banco de trás, onde Priscila dormia. Demoraram tanto para conseguir sair do estacionamento devido ao caos da tempestade, que as duas adormeceram de exaustão. Rebeca saiu do carro, nenhum sinal de Marcos ou Gustavo. Tentou o telefone novamente, finalmente funcionou e Igor atendeu.

− Ai Igor! Onde você está?

− No hospital.

− Tem mais alguém com você?

− Estou com a Renata, acabei de ver o Marcos, acho que ele encontrou o Miguel.

Rebeca abandonou Priscila adormecida e correu para a entrada da emergência. Eram tantos feridos espalhados pelos cantos. Ela viu dois colegas do colégio.

− Vocês viram o Caio ou a Thaís ou a Carol? — perguntou Rebeca.

− Só o Marcos que passou por aqui, foi naquela direção.

Rebeca seguiu o corredor. Não encontrava mais ninguém conhecido. O medo rasgava seu peito. Entrou em uma enfermaria e viu Igor sentado na beira de um leito. Correu e o abraçou, como se ele tivesse renascido. Renata estava deitada na maca com a perna quebrada em mais de uma parte.

− Ela vai ter que operar, mas aqui está caótico. Você sabe onde está a Thaís? — perguntou Igor.

− Eu não sei – Rebeca começou a chorar.

− Marcos passou por aqui correndo dizendo que tinham encontrado Miguel, achei que tivessem encontrado ela também.

− Onde ele está, Igor?

Os dois saíram correndo pelos corredores, até encontrar Miguel com o corpo cheio de feridas abertas, inclusive o rosto. Gustavo abraçou Rebeca, tirando-a de perto de Miguel.

− Ele não sabe onde ela está. Conseguiu levantá-la até a passarela. Acha que ela ficou segura. Depois ele foi esmagado pela multidão no alambrado que contorna o parque.

− E Caio? Onde ele está? – ela tentava controlar as lágrimas.

Gustavo acenou negativo com a cabeça. Macas corriam pelos corredores lotados. Pessoas ensanguentadas, quebradas e arranhadas por todos os cantos. O único silêncio era o da ausência. Um funcionário do hospital gritava pelas enfermarias:

− Lembre-se de avisar aos seus familiares de que está vivo.

***

Passou mais uma hora, Rebeca decidiu poupar a bateria do celular e não tentar mais ligar para os celulares fora de área do irmão e das amigas, então a mãe de Priscila chegou para buscá-la.

− Quer que a gente te leve em casa, Beca? Os meninos querem ficar com Miguel – disse Priscila.

Rebeca olhou para Carmen, mãe de Priscila, como uma luz ao fim do túnel.

− Você tem o número de telefone da mãe da Carol? Eles podem estar na casa dela.

Carmen tinha o número. Telefonou. Encontrou a mãe da Carol dormindo. Foi duro explicar o que estava acontecendo. Eles também não estavam lá.

− Eu não posso ir para casa — lamentou-se Rebeca. — Preciso encontrar meu irmão.

Por mais uma hora Rebeca caminhou em vão pelos corredores do hospital. Até que o seu telefone tocou.

− Rebeca! Sou eu!

A voz de Caio fez emergir as lágrimas já represadas em Rebeca.

− Caio, onde você está? A Carol está com você?

− Estamos bem. A mãe da Carol nos encontrou na porta da nossa casa. As minhas chaves estão no carro do Gustavo e eu perdi dinheiro e celular. Estava desesperado porque não sabia de você. Nós vamos te buscar.

− Mas... ainda falta encontrar a Thaís. – O coração mal relaxara e já apertara novamente.

Miguel delirou chamando pelo nome dela na maca ao lado deles. O corpo cheio de pontos e anestesia.

− Se Caio estava na porta de casa, Thaís também pode estar – disse Gustavo – vamos até lá.

Primeiro foram até a casa da tia de Thaís, as luzes estavam apagadas e tudo silencioso.

− Eu acho que ela não chegou, senão teria me ligado. E eu acho que a tia não sabe o que aconteceu, senão as luzes estariam acessas — concluiu Rebeca. — Não vamos acordá-la, antes vamos até a casa dos pais dela.

A imagem foi chocante. Thaís estava encolhida na portaria do prédio, como um feto. Desmaiada de cansaço e dor. A sola do pé descalço ferido quase em carne viva. Rebeca levou um tempo até conseguir acordá-la e levá-la para o hospital.    

***

Logo que a chuva cessou, descortinou um céu estrelado. Mas ninguém reparou nessa beleza, o terror e o caos dominavam a todos.

Thaís caminhou arrastada pela rua. Seu corpo tremia de frio e sua mente tremia de pavor. Perdera a bolsa com dinheiro e celular. Sabia que caminhava em direção de casa, mas não sabia quanto tempo levaria para chegar. Nos pés apenas uma sandália, o pé nu já começava a arder, ralado pelo asfalto. Só não ardia mais que o peito, correu o parque inteiro procurando por Miguel, em vão.

Os Olhos da Deusa (completo)Where stories live. Discover now