A Lua Cheia

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Apatia

A lua cheia reinava no céu, envolta a uma nevoa misteriosa. O sítio que Perla alugara era ermo e mal iluminado. Priscila foi obrigada a ficar dentro da casa e assistir pela janela o ritual. "Não sei onde é pior: lá fora ou aqui dentro, esse lugar me dá arrepios", pensava enquanto observava Perla lançar o círculo mágico em volta de uma fogueira.

− Eu convoco os guardiões e seus elementos para nos guiarem nesse ritual – falava Perla enquanto marcava os pontos cardeais com objetos mágicos.

Marina assistia ao ritual, apreensiva. Certamente, não ficaria como mera expectadora por muito tempo. Perla estava mudada, a expressão mais tensa, os gestos mais agressivos, a voz mais grave. Aquela pureza dúbia desaparecera por completo. Desde que voltara, não lhe fizera nenhuma revelação, apenas a usou no ritual de despertar a memória para obter as respostas de que precisava.

"Como eu vou fazer para recuperar a confiança dela? Eu lhe entreguei mais do que deveria, aquela poção... O que será que acontecerá comigo depois desse ritual?" – Marina sentiu a garganta arder. O gosto amargo da poção lhe lembrava das consequências.

Perla jogou a pedra na fogueira, uma chama cresceu e faiscou pelo céu. Os Olhos da Deusa também brilharam, Perla sentiu sua orelha novamente arder, mas em menos intensidade. Não desistiu, ergueu seu athame na direção da lua.

− Sou sua serva, minha Grande Deusa. Eu preciso de sua força para seguir nessa jornada. Me guie! Me revele os mistérios dessa pedra.

A fogueira simplesmente apagou, como se desligasse a luz. Priscila sentiu um choque na espinha, a luz da casa também apagara. Restou um breu total. Não conseguia enxergar o que faziam lá fora e não conseguia controlar o pavor.

− Eu peço que autorize a entrada de Marina nesse ritual — pediu Perla.

Marina ouvia a voz da grã-sacerdotisa e aos poucos seus olhos se acostumavam à falta de luz. A lua perdia sua névoa, e começava a brilhar intensamente. Perla traçou uma entrada para Marina no círculo e a convocou com a mão direita estendida em sua direção. Mas, ela não queria ir, sentia que não podia controlar seu medo, nem suas pernas trêmulas. E, principalmente, sabia que qualquer escolha seria um caminho sem volta.

− Você não vem? Está se acovardando? Está abrindo mão da magia?

Marina não tinha forças para responder, pensava só nas sequelas que teria caso entrasse novamente no círculo depois de ingerir aquela poção. Poderia ficar cega, ou torta, ou perder o movimento de algum membro. "Como Perla poderia ser tão cruel depois de eu ter sido tão fiel a ela?"

Perla deu-lhe as costas, dirigiu-se até o centro das cinzas, onde estava a pedra reacendida no poder da Deusa. Ela precisava que alguém lesse a sua mensagem. Por isso Priscila estava ali, Perla sabia que Marina desistiria.

− Eu não posso te obrigar, Marina. — Perla a encarou. — Você sabe o que vai perder.

– Eu sei, mas prefiro abrir mão de ser grã-sacerdotisa a ser aleijada...

− Então vá buscar Priscila e faça-a tomar a poção de apatia.

Aquele feitiço deixaria Priscila sem acesso consciente a qualquer tipo de vontade ou desejo. Apenas o desejo de Perla comandaria suas ações por algumas horas. Talvez a conexão estabelecida fosse tão forte que perdurasse por mais tempo. E esse era um risco que Priscila nem fazia ideia que correria.

Quando Marina entrou na casa, encontrou a prima encolhida no sofá. Desistiu de tentar ver o que acontecia no quintal. Dentro da casa, as formas dos móveis e os estalos tornavam a espera insuportável. Então, ela fechou os olhos e cantarolou uma música qualquer. Quando Marina a tocou, ela levou um susto de parar os batimentos do coração. Foi fácil fazê-la tomar a poção:

− Não se assuste, está tudo bem. É apenas uma queda de energia. Beba essa poção, apenas lhe fará sentir-se mais tranquila e segura.

A lua brilhava imensa no céu. Marina a fez tirar os sapatos, relógio, cinto e abandonar o celular. Ela ficou entregue a um tipo de transe, atravessou o círculo, postou-se de pé em frente à Perla, entre elas apenas as cinzas da fogueira. Perla não pronunciou nenhum comando, Marina sabia que ela fazia tudo através do pensamento. Era um feitiço difícil de conjurar, Perla precisava manter-se livre de qualquer pensamento inoportuno que alterasse o comportamento de Priscila.

A garota pegou a pedra ainda ardente pelo calor do fogo, mas não esboçou nenhuma dor. Dispôs a mão sob a mão de Perla. A pedra foi esfriando até tornar-se fria tal qual gelo.

"É uma conexão impressionante. Mesmo com o conhecimento e habilidade de Perla. Nunca vi esse feitiço funcionar com tanta perfeição. Será que são os Olhos da Deusa que dão esse poder a Perla ou será que Priscila é uma fonte de condução perfeita de energia?" – pensava Marina – "Ser uma fonte de condução perfeita significa servir a uma sacerdotisa e nunca ser realmente uma".

Perla já compreendia a missão de Priscila diante das forças que a Deusa manipulava. Priscila era alguém com todos os canais existentes de energias abertos, prontos a servir a grandes sacerdotisas. As duas fecharam os olhos com as mãos sob as cinzas. Priscila falou em tom baixo, claro e calmo.

− A pedra já cumpriu seu destino. Sua energia estava destinada a revelar uma sacerdotisa da lenda. Marina, ao tomar a pedra em sua guarda, foi dominada pelo poder dela. Era o destino, Marina deveria, sob a dominação da pedra, executar o ritual desejado pela Grande Deusa. Ela abriu a porta para despertar essa sacerdotisa e a energia do outro par de Olhos da Deusa, para que estivessem prontos para o embate.

Perla suspirou, os escritos antigos e as revelações através do uso da visão descobertos naqueles dias em que se manteve reclusa, indicaram a aproximação do desfecho da lenda antiga.

A lua cheia iluminava a cama de Thaís, a luz estava apagada, mas o sono não vinha. De repente, o telefone fixo tocou na casa. Já passava da meia-noite, seu coração disparou. "Deve ser uma má notícia", pensou ela.

− É o seu pai, Thaís! – chamou a tia. – Ele quer falar com você.

Ela caminhou até a mesinha do telefone na sala. Aquele aparelho antigo que girava pacientemente a cada número discado. O pai nunca ligava para o seu celular, sempre para o fixo. Era de uma fixidez e antiguidade irremediáveis.

− Cheguei, minha filha. Estou em casa. Eu quero que você e sua irmã venham amanhã almoçar comigo.

Thaís sabia que isso significava fazer o almoço em casa, comerem quase em silêncio, depois vê-lo deitar-se no sofá da sala, com a televisão ligada no canal que ele escolhesse, até adormecer. Um pensamento aterrorizante a tomou de assalto: "Aquele homem veio com ele?". O sangue já se esvaia do seu rosto, tinha medo até de perguntar. Mas, ainda havia uma esperança.

− A Rebeca me convidou para passar o fim de semana no sítio da avó dela. Precisa de ajuda com as matérias da semana, porque perdeu algumas aulas. A mãe dela adoeceu e ficou internada no hospital.

− A sua mãe gostava muito da mãe de Rebeca — respondeu o pai depois de um breve silêncio.

− Sim, é verdade... – Thaís puxou o ar com força. − A minha psicóloga acha que me faria bem, porque lá é um lugar tranquilo com pessoas que me tratam com muito carinho.

− Eu entendo. Concordo. Nós vamos ficar até quarta, então...

A voz do pai sumiu como se tivesse passado uma ventania bem forte que a levasse para longe. A respiração de Thaís piorou: "Ele veio, ele veio, ele veio...".

− Thaís! – o pai levantou a voz – me responda menina!

− Eu não entendi, desculpa.

− Onde está sua irmã?

− Ela saiu com uma amiga.

− Diga a ela que a espero amanhã de manhã. Bom fim de semana e que Deus te abençoe, minha filha.

Thaís ainda sentia-se fraca quando olhou para a lua cheia. O encontro da energia da lua com o olhar de Thaís foi tão magnético que ela nem piscou. Aos poucos, a respiração, os batimentos do coração e os pensamentos foram se acalmando, até ela sentir-se mais forte e satisfeita por ter conseguido impor sua vontade de ir ao sítio com Rebeca.

Os Olhos da Deusa (completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora