A Lua Cheia V

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A história de Miguel

Estela seguiu sozinha para a clareira do bosque. Precisava tornar límpida a memória que pulsava em sua mente. As cenas vinham como flashes de luz. Lançou o círculo mágico. Estendeu as mãos para o céu e fechou os olhos, buscando o começo daquela história.

Há 12 anos, Jorge chegou ao sítio trazendo uma mulher e uma criança. A mulher tinha o olhar parado e o corpo mole. A criança se agarrava à mãe com os olhos vermelhos por causa do choro intenso.

− Eles precisam de ajuda. Não têm mais ninguém.

− Quem são eles? – perguntou Estela, depois de acomodar o corpo da mãe no sofá, com o menino ainda agarrado a ela.

− São esposa e filho do Tião, ele morreu. Estava endividado, vão perder a casa. – explicou Jorge.

Jorge, Tião e Luís eram amigos de infância. Foram criados juntos. Era inevitável que eles se sentissem responsáveis pela família de Tião.

Estela acomodou mãe e filho num quarto da casa. O médico diagnosticou que ela estava em choque e que de nada adiantaria uma internação, principalmente porque a afastaria do filho. Já estavam lá havia uma semana, e o estado da mulher não melhorou em nada. Um dia, Estela conseguiu convencer o menino a dar um passeio de barco no lago.

Miguel a encarou nos olhos, o lago se agitou como numa tempestade. Estela segurou em suas mãos e viu a imagem através da 'visão': ele diante do pai, conversavam por telepatia. Nenhuma palavra era dita, apenas dentro da mente de cada um. Era uma sintonia extremamente forte, mas que ficava sob controle porque um protegia ao outro.

Miguel direcionava sua habilidade por inteiro para o pai, embora este a desvirtuasse através dos jogos de cartas. Tião logo perdeu o controle, chegava bêbado em casa, às vezes com os bolsos cheios de dinheiro, às vezes vazios. Joana passava as noites chorando escondida e inventando contos de fadas ao filho.

O amor de Joana por Tião foi se transformando em rancor, e Miguel absorvia todos os sentimentos da mãe pelo pai. Sentir o sofrimento e o rancor crescer na mãe despertou ódio em Miguel. Mas, esse ódio não teve tempo de vazão, Tião teve um AVC fulminante. O esforço para utilizar ao máximo sua habilidade nos jogos, misturado à bebida, à falta de alimentação e de sono, foi extremo e tornou-se uma bomba. A exaustão psíquica arrebentou no corpo.

O ódio do menino antes enjaulado no sofrimento da mãe expandiu-se. Estela precisou usar os Olhos da Deusa para que ele se acalmasse. O menino desmaiou exausto no barco, no meio do lago novamente pacificado.

Quando Jorge chegou a casa, Estela já tinha traçado todo o plano para resgatar aquelas vidas:

− Eu posso limpar as memórias deles. Podemos recontar a história de Tião e salvar as vidas de Joana e Miguel.

− Eles não vão se lembrar de nada? Ela sairá do choque e o menino será uma criança normal? — Luís se agarrou a esperança.

− Normal eu não posso afirmar... Miguel é especial, Jorge. Você sabia que ele e o pai possuem a mesma habilidade? Que são empatas?

Jorge sabia. E se sentia extremamente culpado em não impedir a autodestruição do amigo.

− Eu faço o que você julgar ser o melhor para eles.

− Você e o Luís vão se virar para recuperar a casa dela, dar-lhes uma vida digna e amenizar as feridas – resolveu Estela −. Eu vou fazer um ritual para limpar as memórias sobre os jogos, as dívidas, a bebida, o sofrimento, tudo o que for possível. Mas, eu não sei até onde é possível. E vou bloquear que essa habilidade se aflore em Miguel pelo tanto de anos que for possível. Porém, também não sei até quando vai durar.

Os Olhos da Deusa (completo)Where stories live. Discover now