13.

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O silêncio... O silêncio total e o frescor...

Poderia viver neste lugar para sempre, longe de tudo, longe de todos.

Ele aproveita cada segundo de sua solidão, por alguns momentos esquecido da Voz e de sua função e das pessoas lá fora esperando em pé. Senta-se, apoiando as costas em uma das paredes. O chão e a parede de mármore frio parecem feitos de gelo, refrescando sua pele quente. Há quanto tempo será que o sol não bate ali? Talvez nunca tenha batido. Talvez a última vez em que aquela pedra viu o sol tenha sido quando ainda estava bruta na natureza, talvez nem então. Pedras costumam brotar no subsolo, raramente veem o sol.

Talvez aquela pedra nunca tenha visto o sol, nem a chuva, nem o vento, nem qualquer coisa do mundo lá fora. Porque ela é uma pedra sagrada, e coisas sagradas não costumam ver o mundo.

Assim como ele.

Por que estava pensando nessas coisas? Seria a Voz tentando lhe dizer algo?

Fechando os olhos, ele recosta a nuca na parede.

Antes tinha tanta certeza de tudo! Agora está aqui, pensando em como queria ter crescido no sol e na chuva e no vento, e não trancado dentro de um palácio cheio de homens velhos e antipáticos que sempre lhe diziam o que não podia fazer.

De olhos fechados, ele se vê quando criança, numa bela tarde de sol...

Olhando por uma janela do Palácio, ele vê uma menina brincando lá fora. A garota está colhendo flores e as arrumando nas mãos, nos cabelos, nas dobras do vestido amarelado que usa. Ele sorri diante da visão e, sem pensar duas vezes, salta pela janela e corre para onde a menina está. Ela se assusta com o visitante repentino, mas logo sorri e lhe estende a mão, e os dois brincam juntos. O momento de felicidade é tão intenso que ele nem percebe quando Anton se aproxima.

O mais respeitado dos Auxiliadores, esbelto e belo. Um dos poucos que ainda conserva a juventude. E um dos mais severos.

Ele se aproxima, sua túnica negra se arrastando sobre a grama como um pesadelo cobrindo de sombras aquele cenário de sol e flores e crianças brincando. A menina o vê primeiro e, assustada, corre, largando as flores pelo caminho.

Lúcio observa a menina correndo para longe dele, a imensa tristeza caindo sobre seu peito como uma rocha. Só então ele vê Anton.

O homem severo toma seu braço brutamente, apertando os dedos firmes contra sua pele, deixando marcas vermelhas que não desapareceriam o dia todo. Ele o arrasta de volta para o Palácio, machucando seus pés, ignorando seus gritos de protesto. Desistindo da luta, ele lança um último olhar para o corredor de casas por onde a menina desapareceu, uma única lágrima fria e densa escorrendo por seu rosto.

O ódio que sentiu naquele dia ainda faz sua garganta arder, mesmo agora, dentro do Templo. E o ódio o toma por inteiro.

Ele se imagina grande, usando uma capa preta dos pés até a cabeça. Ele se imagina com asas como as de um corvo. Se fosse um corvo, voaria de asas abertas na direção de Anton, soltando um guincho medonho, fazendo o homem alto fugir de medo.

Onde será que aquela menina estaria agora?

Ele esconde o rosto entre os braços dobrados, o frio da rocha penetrando suas costas.

Os pensamentos de ódio eram a porta de entrada do mal. Se a Voz podia ouvi-los, ele certamente teria sérios problemas. Mas, por que parecia que a Voz não escutava seus pensamentos? Talvez fosse apenas uma voz mesmo, que só fala, não ouve. Mas então, como saberia o que dizer?

Seus pensamentos eram cheios de dúvidas, eram maus, e lhe roubavam sua inocência. "Amar é a eterna inocência, e a única inocência não pensar".

A frase brota em sua mente, emergindo de algum canto obscuro de sua memória. Aquele poemas, profundamente difícil de ser entendido, parece ter algum sentido, afinal.

Era a verdade: a única forma de ser inocente era não pensar. E ele já estava pensando demais...

E quanto a amar? De amor ele só ouvira falar de dois tipos: o amor da Voz, e o amor de uma mulher. O amor da Voz funciona de forma bem simples: a Voz tudo criara, tudo mantinha, tudo fazia, e ajudava a quem a amasse de volta. Já o amor de uma mulher é ao contrário, o homem é que deveria mantê-la, ajudá-la, para então ser amado em troca. Curioso que a Voz tivesse um amor oposto ao de uma mulher. Seria a Voz homem? Se não fosse homem, seria o quê? Mulher é que não podia ser, porque senão seriam as mulheres a entrar no Templo, a auxiliarem, a cobrarem os impostos, e não era assim que as coisas eram. Uma mulher jamais havia ouvido a Voz, apenas ele e...

Ele se levanta, assustado. A Voz! Quanto tempo havia se passado desde que entrara no Templo? Perdido em suas divagações, havia esquecido completamente da Audição, da Voz, e das pessoas lá fora o esperando. E, novamente, não tinha escutado nada naquele templo vazio e escuro. Pela segunda vez, estava falhando em seu encargo mais importante.

Seu coração acelera enquanto pensa o que fazer.

O mundo parece suspenso num sonho, sua mente vagando distante, tentando encontrar uma solução. Quanto mais pressa sente, mais devagar seus pensamentos se arrastam e rolam em sua mente, como nuvens, formando uma imensa massa cinza. Há uma imensa massa cinza de pessoas lá fora. Pessoas em pé, esperando, impacientes. Ele imagina a multidão cruzando os braços, irritada. A multidão e os Auxiliadores. Os Auxiliadores, e seu pai. E a frustração geral no olhar de cada um deles se soubessem que o Sacerdote está há muito tempo ali e sem escutar nada, apenas pensando, pensando em poemas, pensando em problemas e pensando em coisas antigas, sentindo ódio de seus Auxiliadores. E pensando tão alto que talvez a Voz estivesse falando, e ele não escutando.

De súbito, um estalo em sua mente lhe dá uma ideia: e se todas suas divagações fossem exatamente a Voz falando com ele? Tinha que admitir que os pensamentos brotaram quase espontaneamente e lhe revelaram muitas coisas sobre si mesmo que jamais havia pensado antes, assim como havia acontecido durante a primeira Audição. Mais uma vez, a Voz devia estar se comunicando através de meios mais sutis.

Só podia ser isso! E caso não fosse...

Quem mais saberia?

Ele então caminha na direção da entrada, ativando a engrenagem que corta o silêncio com o ronco das portas raspando sobre a pedra.    

    

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Dantálion [COMPLETO]Where stories live. Discover now