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Os dois caminham em direção ao poço, já vestidos com as túnicas dos Surdos.

- Diga-me, - pergunta Dantálion, sua voz alterada pela máscara dispersando estranhamente pelas árvores – você acredita realmente que a Voz fala com você?

O outro não responde de imediato, refletindo sobre a questão.

- Acho que sim.

- Por quê?

- Porque eu já tive a impressão de ouvi-la no Templo.

Uma risada abafada escapa pela máscara de Dantálion.

- Está rindo do quê?

- Nada, é só que é engraçado. Você é o Sacerdote, não é? Deveria ser o único a ouvir a Voz com clareza, e você me diz que já teve a impressão de ouvir. Isso é bastante divertido. O que seu pai diria se soubesse disso?

- Ele nunca saberia.

- Talvez ele saiba mais do que você pensa.

- O que está insinuando com isso?

- Que talvez você não ouça Voz nenhuma, assim como seu pai nunca ouviu. Assim como seu avô, e todos os Sacerdotes antes dele.

- Você não tem como afirmar isso. Talvez ela não fale comigo justamente porque eu a estou desobedecendo.

Lúcio entrelaça os dedos uns aos outros, perdendo a circulação. Não ouvia a Voz porque era o pior Sacerdote do mundo. Talvez nem mesmo pudesse ser chamado de Sacerdote.

- E por que então continua desobedecendo, Moloque?

- Não sei... Às vezes acho que a voz de Dantálion diz coisas mais importantes que a Voz... Tudo que você diz é triste, mas tem a clareza que não escuto em nenhuma palavra do Palácio. É difícil duvidar de você. Você é muito... Convincente.

- Me sinto lisonjeado assim, meu Sacerdote. – brinca o outro, estendendo um dos braços num gesto de majestade.

- Eu não tenho como ter certeza, – continua Lúcio – mas sei que, no momento, a única voz que fala através de mim é a sua. De certo modo, é você quem está governando esta cidade.

- Acho que guiar uma cidade ao caos não se encaixa exatamente no conceito de governo.

- E quem de nós se encaixa em alguma coisa, Dantálion?

O garoto não responde.

- Se você sabe que desobedece a Voz ao me ouvir, - pergunta subitamente - por que não consegue admitir que não acredita nela? Você não tem medo de ser punido pela blasfêmia que acabou de dizer? Você não acha que teria medo se realmente acreditasse em toda essa história?

- Eu acredito na Voz, sim. Se ela não fosse real, por que a cidade inteira teria tanta certeza de que ela existe? Além do mais, não é possível que todos os Sacerdotes tenham se enganado igualmente, todos eles diziam escutar a Voz. Como você explica isso?

- O Sacerdote é você. Não sou eu que posso responder essa pergunta. – ele pausa, um grunhido fraco de humor sobressaindo a seus passos - Mas suponhamos que, hipoteticamente falando, fosse você o Sacerdote que não escuta a Voz. O que você faria? Fingiria escutar ou diria para todos que não ouve nada e aceitaria as consequências?

- Eu acabei de responder essa pergunta.

- Então por que me pergunta coisas das quais já conhece a resposta?

- Eu não conheço a resposta. Só porque eu tenho um problema, não significa que tenha algo de errado com a Voz e com os outros. Tem algo de errado comigo.

- Tem algo de errado no mundo inteiro, Lúcio.

- E você por acaso sabe a resposta?

Ele se vira com irritação, bloqueando o caminho de Dantálion.

- Sei mais do que gostaria de saber, Moloque. Eu queria ainda ter a sua ingenuidade. Talvez assim eu pudesse me sentir em paz de vez em quando.

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Dantálion [COMPLETO]Where stories live. Discover now