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O banquete realizado com as oferendas é deslumbrante, mais rico e saboroso do que o anterior. Carnes nobres, castanhas e frutas brilhantes se espalham sobre a mesa, atiçando a fome voraz dos Auxiliadores, que não perdem tempo em reabastecer os pratos assim que ficam vazios.

O Sacerdote permanece alheio, revoltado ao ver aqueles produtos, criados com o esforço de pessoas famintas, servindo como refeição para encher o estômago de tantos homens inúteis e maldosos. E o pior, certamente, era saber que tudo aquilo estava ali por sua causa. Era graças às suas ordens que o povo mais uma vez entregava o pouco que tinha para ser consumido pelo Palácio. As sobras, que seriam muitas, provavelmente iriam para o lixo. O lixo que talvez servisse de alimento para as mesmas pessoas que haviam cultivado aqueles legumes...

O semblante do velho baixo ao seu lado, porém, o relembra a cada instante de como é perigoso deixar seus sentimentos à mostra. Vero estava certo. Ele precisa participar mais dos eventos do Palácio e dissimular quem realmente é, sob risco de perder a própria vida.

Até que era fácil, se imaginasse que estava ainda vestido com o manto negro e a máscara dos Surdos. Que era apenas um invólucro. Apenas uma armadura vazia sem nada de importante por dentro. Seu eu interior estaria seguro enquanto sentisse o peso da máscara sobre seu rosto. Aos poucos compreendia como administrar suas três personagens distintas e conflitantes: o Sacerdote, Moloque e Lúcio.

O Sacerdote era quem estava sendo agora, o mesmo que era antes de conhecer Dantálion: cordial, feliz, respeitado. O Sacerdote era elevado espiritualmente, ouvia a Voz e obedecia às leis com vigor. Não se importava em comer banquetes. Não via injustiça ou maldade nas ações dos Auxiliadores ou nas suas próprias. O Sacerdote era puro, casto e centrado. Era a brancura imaculada de um paraíso na Terra. Sua mente era o desejo da Voz Criadora. Suas palavras eram a ponte que trazia a vida do mais alto patamar celestial. Sem erros. Sem falhas. Sem questionamentos.

Moloque, no entanto, era o Surdo imoral, que fugia à noite para se reunir com conspiradores e tramar a morte dos seus semelhantes. Era menos que um ser humano, era um demônio, sem rosto, sem voz, sem alma. Moloque era a concentração de todo o furor destrutivo e esfomeado, que não se saciaria em comer alimentos comuns, mas somente com o sangue. Moloque beberia o sangue de todos os Auxiliadores. Beberia o sangue da própria Voz, e dançaria de êxtase diante da queda de todos os anjos gentis que pudessem existir no mundo. Era o poder desmedido e descontrolado, infiltrado no alto do palanque. Aquele que, aos olhos do povo, trazia consigo a luz. A luz, porém, que seria a causa do incêndio que mataria a todos.

E quanto a Lúcio?

Ele só consegue se enxergar como Lúcio quando pensa na figura de Dantálion.

É só diante dele que podia se sentir Lúcio de verdade, sem precisar usar o manto branco do Sacerdote, nem o manto negro do Surdo.

Com Dantálion, podia rir, podia chorar, podia falar tudo que pensava e fazer todas as perguntas que quisesse. Podia não ter medo de ser espontâneo, não ter medo de ser descoberto, nem morto. Podia usar seu nome verdadeiro e esquecer todos os títulos.

Lúcio não usava nenhuma túnica: era nu, como diziam que o homem era nu antes de ser expulso do Paraíso, onde a Voz falava diretamente com as pessoas e não havia maldade. E Lúcio, por ser nu, estava sempre presente.

Eram os olhos de Lúcio que olhavam através dos furos na máscara preta. Eram os olhos de Lúcio que olhavam, à distância, quando o Sacerdote erguia os braços e discursava para a multidão. Era Lúcio que, neste momento, o obrigava a esconder seus sentimentos de nojo diante do prato cheio de comida à sua frente.

Ele luta contra si mesmo para não esboçar o desgosto que sente quando Anton se aproxima e o cumprimenta.

O toque daquele homem desprezível deixa em sua mão a sensação do sangue da mulher morta no julgamento, impregnando em sua pele, sujando-o.

Dantálion [COMPLETO]Where stories live. Discover now