Dantálion [COMPLETO]

41.

Aqui estamos de pé diante do abismo,

e o mundo está em chamas.

Dois amantes impossíveis tentando alcançar

a besta de muitos nomes.

A liderança da Estrela da Manhã mostrará o caminho

para o vazio.

Ele é

Ele é o brilho e a luz sem o qual não posso ver.

Ele é

A insurreição e o ódio

ele é a força que me fez existir.

Ele é

a desobediência que nos mantém juntos.

E estamos caindo

rumo ao precipício.

HE IS - GHOST

A Audição está prestes a começar, e ele sabe que é o momento de dar sua resposta definitiva.

Dantálion estava errado.

Não era ao atravessar a porta da Ordem dos Surdos que havia escolhido estar ao lado deles. A única forma de se aliar verdadeiramente seria governar de acordo com os planos de Dantálion, o que significaria atrair para si toda a fúria da cidade.

Assim como a fúria dos próprios Surdos.

A situação seria bastante complicada, e ele teria que se submeter à vontade do garoto, mesmo que isso significasse destruir sua reputação diante de todos. Ninguém, além dele, saberia que tudo não passa de uma estratégia, e, assim que uma rebelião eclodisse, ele seria o alvo número um. Ele seria o inimigo do povo, dos Surdos, e também dos Auxiliadores, caso descobrissem o esquema. Sua segurança dependeria totalmente da capacidade de Dantálion de manter as coisas sob controle. Mas, afinal, até que ponto o garoto poderia protegê-lo?

Havia também a outra opção: não se aliar aos Surdos e voltar à sua rotina anterior, como se tudo não tivesse passado de um sonho. Se fizesse isso, porém, teria que cortar todas as relações com o garoto, e ainda continuaria sendo o alvo dos Surdos. E, mesmo que por um milagre conseguisse retomar a normalidade, ainda estaria sob o risco constante de ser traído pelos Auxiliadores.

Eliminando-se os fatores de risco, que eram praticamente os mesmos, a única decisão que realmente importava era se confiaria em Dantálion ou não. Como Sacerdote, sua vida estaria em constante risco, não importando qual caminho escolhesse. Ele poderia se deixar ser manipulado pelos Auxiliadores para manter o sistema enquanto os Surdos não o matassem, ou poderia se deixar ser manipulado por Dantálion, e correr todos os riscos de tentar derrubar o palanque sobre o qual ele mesmo se apoia.

Havia uma diferença básica, porém, que o seduzia mais que tudo: ao lado de Dantálion, poderia conhecer a verdade que os Auxiliadores escondiam.

A verdade valeria o preço que teria de pagar? Alguns dias antes, certamente diria que não. Mas agora, já não havia muito que duvidar.

O dia anterior havia mudado muitas coisas. Ele já havia presenciado execuções antes, mas ser o responsável pela morte de alguém era totalmente diferente. Ver a mulher sendo morta, ver Dantálion se retorcendo de dor no chão, vê-lo mais tarde embriagado e chorando a morte dos pais, imaginar a morte de seu avô, de sua mãe, dele mesmo no futuro, caso desagradasse aos Auxiliadores... Tudo aquilo se remexia dentro de si com intensidade, uma explosão pronta para estourar a qualquer momento dentro de seu peito.

De que valeria sua segurança falsa? De que valeria sua vida, se tiver que ordenar a morte de sabe-se lá quantas pessoas inocentes? Como poderia voltar a ser quem era, tendo visto e ouvido e sentido tudo que aconteceu nas últimas semanas? Como poderia governar para satisfazer os interesses de pessoas que apenas queriam usá-lo e descartá-lo quando não tivesse mais utilidade?

Ele permanece pouco tempo dentro do Templo. Sua decisão estava tomada.

Ao chegar ao Púlpito, ele vasculha os rostos da multidão, até encontrar o olhar infernal e inconfundível do garoto que havia mudado o rumo de sua vida irremediavelmente.

Como poderia imaginar que um dia estaria ali, encarando à distância o líder do movimento que queria vê-lo destruído, e que, por uma estranha movimentação do destino, havia se tornado também o seu melhor amigo? Interiormente, os dois eram aliados, prontos para morrerem lutando juntos. Quem olhasse por fora, porém, veria dois inimigos mortais, tentando se aniquilar mutuamente.

Um sorriso de perplexidade sobe por seu rosto, refletindo-se no próprio sorriso cruel do garoto que o observa da multidão. Eram o Sacerdote e o Surdo. Moloque e Dantálion. A luz e a escuridão.

- Irmãos, - ele diz com confiança, erguendo os braços em toda sua majestade, lançando um olhar de altivez para o garoto que continua a observá-lo, analisando cada movimento seu – a Voz deseja expulsar o mal do meio de nós, e, para tanto, ordena que lhe sejam feitas novas oferendas. Aqueles que não ofertarem deverão pagar o dobro ao Palácio no próximo mês.

Uma multidão de olhares furiosos se levanta, mas ele se mantém concentrado no único que poderá salvá-lo da ira de todas aquelas pessoas. Dantálion acena discretamente com a cabeça, seu sorriso se expandindo, aprovando sua decisão.

Daquele momento em diante, estariam unidos por laços de sangue.    

Seja bem-vindo à resistência, Lúcio.