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Em meio à escuridão total, é possível ouvir somente o som contínuo das águas escorrendo para longe.

Sede.

Abaixando-se à beira do rio, ele bebe a água fria e deliciosa. Mergulha os braços, seduzido pelo frescor revigorante em sua pele. Afunda então o rosto, invadido por uma estranha sensação de felicidade. Logo lança o corpo todo para a água, nadando tranquilamente no rio escuro e profundo.

Enquanto nada, uma voz cadenciada começa a chegar a seus ouvidos, aumentando cada vez mais em volume. Seus olhos seguem na direção da margem, procurando a origem daquela voz.

Quase invisível numa das bordas, Dantálion segura um livro enorme aberto nas mãos, recitando poemas.

Poemas que não têm palavras, não têm versos. São apenas sons ininteligíveis, graves e medonhos, recitados com fervor pelo garoto absorto em sua tarefa, que não para nem mesmo para respirar.

Dantálion não o vê, não ouve seu nome ser chamado. Apenas continua alheio sobre a margem, concentrado no livro, abrindo a boca insensivelmente para proferir palavras infernais.

Só então a primeira pessoa se aproxima.

É um velho que Lúcio nunca viu antes. Seus traços são completamente cobertos pela túnica branca e dourada que usa, refletindo luzes pela mata sombria. Não há necessidade de pensar muito a respeito de quem seja a figura vestida na túnica Sacerdotal: seu avô. O avô que, décadas antes, havia ajudado os Surdos a escaparem da pena de morte, e então assassinado por seus próprios Auxiliadores.

Ele caminha cegamente, passando ao lado de Dantálion sem notá-lo, e continua a caminhar, mesmo quando a margem acaba sob seus pés, afundando no rio sem protesto algum.

Lúcio tenta gritar, tenta alertar Dantálion para que o salve, mas sua voz é tragada pela correnteza.

Ele nada com todas as forças para alcançá-lo, sem sair do lugar. A água deliciosa em que nadava se torna repentinamente espessa, segurando-o.

Então vem a segunda pessoa:

Uma mulher, vestida também com roupas brancas e douradas, seu rosto jovem desfocado sob uma névoa de esquecimento. Apesar do rosto apagado, seria impossível não reconhecer a jovem que foi envenenada após ter seu nome citado numa investigação do Palácio: sua mãe.

Ela imita o velho, também desaparecendo sob a superfície.

Só então Lúcio vê a fila interminável de pessoas caminhando, umas após as outras, na direção do rio, enfeitiçadas pelas palavras que Dantálion lê.

Logo chega a mulher de cabelos marrons, com o filho deformado no colo, seu pescoço exibindo um profundo corte que o atravessa de ponta a ponta. Ela pula também. Atrás dela vem o homem que Dantálion havia esfaqueado, com um buraco vermelho revelando cada fibra de sua traqueia.

E a fila continua a se mover, cada um deles caindo no rio, sem voltar para a superfície.

Alguns rostos são familiares, outros são apenas vultos indefinidos.

Incapaz de assistir ao espetáculo sinistro, Lúcio olha para a água.

O líquido se torna cada vez mais espesso, grudando em sua pele, puxando-o para baixo.

O frescor inicial agora havia se transformado em uma sensação agoniante de sujeira e repulsa.

Sua pele queima. Se torna áspera como areia, esfarelando-se em seus dedos.

Ele ergue uma das mãos para ver melhor.

A mão que sai da água está coberta de sangue.

Em pânico, ele olha ao redor, lutando desesperadamente para sair dali, agitando pernas e braços da melhor forma que pode, gritando para que Dantálion o ajude.

Mas já é tarde: o rio começa a coagular, tornando-se escuro e denso. Sua cabeça afunda no líquido, seus olhos e boca e nariz se enchem com o sangue viscoso.

Ele grita por socorro, estendendo a mão para Dantálion, que continua a ler o poema, indiferente ao seu sofrimento.

Ao gritar mais uma vez, o sangue invade sua boca por completo.

Ele tenta cuspir, mas o líquido, já coagulado, se prende aos seus dentes e língua, impedindo-o de respirar.

O cheiro e o gosto metálico são tão intensos que o deixam tonto. Uma camada vermelha e seca recobre seus olhos, dificultando sua visão.

Perdendo os sentidos, ele vê quando Dantálion fecha o livro, olhando diretamente em sua direção. Com um sorriso cruel, o garoto lhe dá as costas, deixando-o para morrer sozinho.     

     

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Dantálion [COMPLETO]Where stories live. Discover now