22.

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O sol se põe lentamente, tingindo o céu com tons de vermelho e roxo. O mais longe que sua vista pode alcançar são alguns montes, tão distantes que mal se pode desenhar o traçado deles.

O pátio superior do Palácio sempre foi para ele um lugar de reflexão. Desde criança, costumava olhar para esses mesmos montes, se perguntando o que haveria depois deles. As poucas vezes em que ousou perguntar para alguém foram péssimas experiências. Sempre o olhavam com censura, dizendo que aquelas perguntas não eram boas. O mesmo acontecia quando perguntava das estrelas: o que eram? De que eram feitas? Por que brilhavam? "Não sei, não devemos questionar tais coisas, a Voz fez com que fossem mistérios, e assim devem permanecer", era o que respondiam.

Então vários anos passaram, da infância até o presente, sem pensar mais nos montes, nem nas estrelas.

Agora, porém, as inquietações voltavam, e ele mantinha o olhar fixo no horizonte. Apesar do medo que sempre teve de fazer tais perguntas, um novo ânimo lhe dava coragem de pensar nelas: havia alguém que poderia respondê-las.

A ideia de ter as respostas para esses e outros mistérios o deixa empolgado, fazendo sentir como se um fluído subisse por suas costas, enchendo seu peito, seu rosto e seus olhos de uma sensação que não sabia descrever, mas que pensava, deveria ser a sensação da própria vida, se soubesse que nascera deveras...

Seus devaneios são abruptamente interrompidos quando se dá conta da presença do pai ao lado. Ele tenta reprimir um sobressalto, na esperança de não ser entregue por suas reações.

O pai, porém, não está olhando para ele. Olha também para o horizonte, igualmente perdido em pensamentos.

Nunca havia prestado muita atenção no rosto do pai. A luz alaranjada joga sombras compridas por ele, destacando suas feições fortes: o nariz imponente, que faz uma mudança brusca de direção, como se estivesse quebrado. Os lábios, bem mais marcantes que os seus, e a testa reta e dura, que lhe dá uma fisionomia severa e incisiva. A aparência, enfim, que deveria ter um líder, e que Lúcio jamais enxergara em si mesmo.

O silêncio começa a se tornar desconfortável, quando o antigo Sacerdote, no seu tom de voz suave e certeiro de orador, o quebra:

- Você está bem, meu filho?

O Sacerdote olha para os próprios pés, escondidos pela túnica branca e dourada. Não tão dourada quanto a túnica cerimonial para as Audições, mas, ainda assim, deslumbrante.

- Estou bem.

- Que bom. – diz o pai, sem retirar os olhos do horizonte – Nós não temos conversado muito desde sua primeira Audição, e eu fiquei imaginando se não haveria nada que você gostaria de conversar a respeito disso.

Ele olha então para o filho, seus olhos acinzentados parecendo dois lagos cristalinos e profundos.

- Está tudo bem. Existe algum motivo pelo qual o senhor tenha tido essa impressão?

- Não precisa me chamar de senhor, eu sou seu pai. – diz, tocando-o de leve nos ombros – E não, não tenho nenhum motivo específico para isso, só queria conversar um pouco com meu filho.

O Sacerdote retorna o olhar para o pôr-do-sol, agora já encerrado, o céu mudado para um azul cada vez mais escuro, e a primeira estrela aparecendo. Com certeza havia um motivo. Raramente seu pai vinha conversar em particular.

O Sacerdote mantém seu silêncio.

- Meu filho, - retoma – mesmo que você não tenha nada para perguntar, eu gostaria de te falar sobre algumas coisas que envolvem nossa rotina de sacerdócio. Preciso dizer que você se saiu muito bem nas suas duas Audições, e estou bastante orgulhoso. Tenho certeza de que, no momento, você e a Voz já possuem uma intimidade crescente.

O pai lança um sorriso. Seus dentes, perfeitamente brancos e alinhados, lhe conferem um sorriso capaz de despertar a simpatia até mesmo em uma pedra. Ele continua:

- Porém, com o passar do tempo, você vai perceber que a Voz não fala apenas durante a Audição, mas possui uma variedade infinita de linguagens.

"A Voz é criadora de tudo e de todos, e fala por meio de sua criação. Às vezes, ela poderá falar com você através de sonhos, de pensamentos, de sentimentos, e até mesmo através de outras pessoas. Lembra-se das oferendas recebidas há algum tempo atrás? A Voz as pediu através de muitas formas, inclusive com a ajuda dos Auxiliadores. Pode parecer difícil no começo, mas em breve você terá mais sensibilidade para compreender a vontade da Voz."

O Sacerdote não responde, cogitando a respeito do que o outro acabava de falar e do que isso significava. Ele tem um mau pressentimento a respeito daquelas palavras.

- Pai, - diz de repente, virando-se – eu gostaria de saber mais sobre a administração da cidade.

O pai mantém seu sorriso.

- Por que motivo?

- Porque eu sou o Sacerdote, e acho que seria bom entender melhor o que se passa com meu povo, para poder ajudá-lo. Como posso ser responsável por algo que não entendo?

- Filho, - o sorriso desaparece, substituído por uma expressão cansada – eu sei que somos os Sacerdotes, e que você está disposto a cumprir sua função com empenho, mas existem coisas que eu não posso fazer, e coisas que você não pode fazer. - ele desvia o olhar mais uma vez - Nossa função é transmitir a mensagem da Voz e zelar pela vida espiritual de nosso povo, e não há tarefa mais importante do que essa. As questões administrativas são responsabilidade dos Auxiliadores, já que tomariam muita energia, e nós precisamos de toda nossa energia para cumprir nossa função.

O antigo Sacerdote toca em seu ombro novamente, encorajando-o.

- Não fique tão preocupado, está bem? Eles são seus braços e pernas. Deixe que trabalhem enquanto você se concentra naquilo que cabe somente a você. Seja os ouvidos e boca, atenha-se às palavras. É isso que todos esperam de você.

O garoto força um sorriso, que só alcança a metade do que um sorriso deveria ser. O pai suspira e deixa a mão cair, caminhando na direção das escadas.

O Sacerdote o acompanha com o olhar.

O céu já está quase negro, destacando a figura imponente do antigo líder, que caminha com suas vestes impecavelmente brancas, as mãos pousadas solenemente sobre as costas.

Ele se detém diante do primeiro degrau, virando o rosto indecifrável na direção do filho.

- Na verdade... Foi Anton que me sugeriu conversar com você. Ele disse que você anda um pouco... Distraído.    

    

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Dantálion [COMPLETO]Where stories live. Discover now