XLVII - O MAGO INFERNAL

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 Uma torre de pedras fixada em um lajedo rochoso no mar, não muito distante da costa era bombardeada pela ressaca violenta provocada por uma tempestade que se aproximava. As nuvens negras e pesadas eram iluminadas por fortes relâmpagos. O vento uivava.

Era uma torre que lembrava os faróis, no entanto, era mais alta, com musgo verde cobrindo as paredes em sua base e alguns ramos de hera que engalfinhava até lá no alto. Havia uma porta e apenas uma janela no alto. No interior da torre um bebê chorava descontroladamente.

— Calma... — Uma voz sussurrante ressoava.

Lirah trajava um fino vestido azulado de alças finas, cobrindo os seus ombros com xale de tricô. Ela segurava em seus braços um bebê de poucas messes de vida, pele alva e bochechas rosadas. Ainda era bastante calvo, mas se notava poucos fios ruivos de cabelo que tomavam um aspecto alaranjado.

A maga repousou em um berço arredondado de madeira, enrolado em um grosso manto de linha. Ele havia dormido, finalmente. Ela apenas temia por ele despertar assustado com os trovões.

Lirah se sentou em uma cadeira estofada ao lado. Observava aquela criança. Infelizmente, por mais que fosse o seu filho, ela não conseguia nutrir por nenhum afeto. Era um indesejado. Apenas um fruto dos abusos constantes de Kainã, o resultado de algo que nunca foi amor. Ela sabia que se tratava apenas de um inocente, porém, ela sentia apenas desprezo. Isso a consumia, a fazia se sentir mal e era como um pesadelo que lhe atormentava a cada segundo.

Ainda assim, dando um filho que tanto Kainã desejou, ela ainda foi espancada apenas pelo fato da criança não haver herdado os olhos de serpentes do pai. Ela observava as cicatrizes em seus braços e mãos. Eram chicotes ou qualquer objeto que ele portava e usava para agredi-la. Ele se tornou ainda mais violento após a última batalha contra Meicy. Ele a castigava pelo seu fracasso e por não ter conseguido sequer encostar um dedo no feiticeiro. No início os estupros eram frequentes, após a gestação ele a prendeu naquela torre e quando Órion nasceu o ancião simplesmente não se importou mais de visitá-la.

Parecia que todas as pessoas haviam se esquecido dela. Ela estava confinada naquela torre, sem o seu cristal de teleporte, incapaz de fugir. Trancada, exausta e adoecendo, tanto fisicamente quanto mentalmente. O seu estoque de alimento estava escasso, mas ela não sentia mais fome. Ela dormia grande parte do dia para fugir daquela realidade, para se esquecer de sua existência. Ignorava os choros do filho o tanto que pudesse suportar.

Ela não se reconhecia mais e não conseguia distinguir nenhum dos seus sentimentos. Para ela, era como se não houvesse mais sentimento algum. Era apenas uma casca vazia com uma vida não vivida.

O vento forte fez as abas das janelas de abrirem e bater contra a parede em um estalo. Lirah despertou de seu devaneio com o susto. Ela olhou para o lado de fora. Estava frio e escuro. Ela se levantou após ponderar por um tempo. Caminhou até a janela, que era grande e alta, que formava um arco imperfeito em cima. Ela encostou-se ao parapeito e sentiu a brisa fria gelar o seu nariz.

Era alto. Era tentador. Parecia um convite. Poderia ser a sua saída, se libertar de tudo aquilo, de toda dor e sofrimento. Talvez ela pudesse dormir em paz. Um flash das lembranças ruins a atormentava: Única maga Kilmato, se escondendo para não ser descoberta, sendo usada como arma, perdendo o grande amor de sua vida, perdendo os seus verdadeiros amigos, sendo violentada, violada e atormentada. Ela era uma maga infernal, dotada de grande poder, mas, isso de forma alguma lhe deu coragem para se defender e se lhe desse, teria o mesmo destino de Meicy.

Ela subiu no parapeito da janela. Sentia o vento frio na pele, olhava a maré agitada embaixo lhe convidando para sepultá-la. Uma lágrima correu por sua face e ela virou o rosto, olhou para Órion pela última vez. Era o dever de ele estabelecer a linhagem dos magos Kilmatos. Ele merecia amor e todo o carinho, tais que ela nunca poderia lhe conceder.

Lirah abriu os braços e fechou os olhos. Deixou o seu corpo cair lentamente. A queda foi rápida, ela mergulhou nas águas escuras e profundas, desaparecendo na imensidão do mar, até onde as ondas pudessem levar o seu corpo para a costa. Estava frio. Os seus pulmões se encheram de água, mas ela não sentiu dor. Sentiu alívio e paz. Finalmente ela pôde descansar. 

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Legend - O Feiticeiro Oculto (Livro 2) EM REVISÃOWhere stories live. Discover now