Capítulo Cinquenta e Quatro

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Amanda Linhares

A todo momento eu só pensava "Impossível que isso realmente está acontecendo. Deve ser um sonho muito realista.", e aí eu sentia uma fisgada no útero e... Nada acontecia, eu não acordava daquele pesadelo. Eu continuava ali, sangrando, sofrendo e sentindo o meu couro cabeludo ficando gelado, significava que o meu cabelo não estava mais ali pra esquentá-lo.
Eu era tão apegada ao meu cabelo, cuidava tão bem dele, não podia acreditar que ele estava indo embora.

— Ai, garota! — me chutou — Para de chorar, tá me atrapalhando! — Manuela disse irritada.

— Não, eu tô com dor. — choraminguei, implorando pra que ela não me chutasse mais.

Ela não disse nada, só riu e continuou passando a máquina enquanto a outra mulher que estava junto dela me olhava impassível, sem expressão alguma, ela não parecia ter compaixão.

— Papo reto?! — escutei uma voz masculina do lado de fora da casa.

— Que que é, Mauzão? Vai acender velinha pra vacilão, é? — agora era a voz inconfundível daquele homem que a comunidade jurava ser bom — Se fechou com parada errada, roda junto!

— Coé, Johny. — a voz do menino ficou trêmula — Pô, o CL era purão, não precisava disso, parceiro. O Gordo, cara... — ele parou de falar.

— Quer chorar? Vai chorar longe de mim, senão você é o próximo! — disse ríspido — Ele era um filho da puta! Tava tramando pelas minhas costas junto com o arrombado do Felipe! — gritou — Ele e o Gordo! Tá achando ruim?!

O silêncio se estabeleceu por segundos.

— Quer saber? Vai lá pra entrada do morro ficar na linha de frente, tá me irritando já! — exclamou — E para de chorar, porra! Você é viado agora? Tá dando o cu? — disse rude — Se atirarem, é pra atirar!

Não escutei uma resposta, só passos se afastando da casa que eu nem sequer sabia aonde ficava. A Rocinha era o mundo, enorme, eu poderia estar em qualquer parte da favela e tinham partes que eu nunca sequer havia chegado perto.

— Bravo, não é querendo me meter, mas e agora? Quem vai cuidar da contabilidade? Menor era crânio com número, adiantava geral aqui.

— Você também, Nonato? — perguntou irritado — Porra, hoje vocês tiraram o dia pra encher a porra do meu saco, hein! Vou te contar!

— Que isso, chefe. Só perguntei porque é muita coisa que entra no morro. Ninguém aqui é bom de matemática, tu sabe, pô.

— Cala a boca e vai chamar o Jhonathan, rápido. — disse ríspido.

— Cara, sem cabelo você fica horrível. — Manuela disse rindo — Né, AK?

A mulher não a respondeu.
Eu não tinha mais forças pra tentar lutar pela minha vida, só tinha forças pra suplicar por piedade. Como alguém poderia ter tanto ódio no coração gratuitamente? Ela sempre teve uma vida de rainha, tinha tudo o que queria na hora que queria, eu nem sabia o motivo dela ter virado o que havia virado. Eu nunca havia feito nada pra Manuela, absolutamente nada. Se tinha alguém que tinha o direito de suprir ódio e com toda a razão do universo, esse alguém era eu. Meu pai preferiu cuidar de uma criança que ele sequer era o progenitor, a deu amor, conforto, escola particular, aula de judô, de balé, de teatro... Ele preferiu me deixar a esmo com a minha mãe do que cuidar de mim. Eu quem devia ter ódio dela, não ela de mim.
Olhei a ferida do meu braço e não parava de sangrar um só segundo, o sangue escorria e àquela altura já havia sujado meu uniforme inteiro. A minha barriga contraia involuntariamente, expulsando sangue do meu útero. Eu sentia um líquido quente saindo pela minha vagina, sabia que eu estava com hemorragia depois do chute forte que eu havia levado daquele traficante e mesmo assustada com aquela certeza, eu não tinha o que fazer. Se eles não me matassem, eu morreria porque o meu sangue estava se esvaindo pelo chão sujo daquele cativeiro.

Entre A Paz E O CaosWhere stories live. Discover now