Capítulo Dezesseis

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Amanda Linhares

As ruas ainda tinham vestígios de uma guerra urbana recente. Cápsulas de diversos tipos de calibres e armamentos estavam espalhadas pelo chão das vielas. Postes, muros, portões, carros, motos, todos furados pelos projéteis. Estava tudo deserto. Eu sentia o medo eminente dos moradores, medo de explodir um novo confronto, inclusive eu compartilhava do mesmo medo.
Minha cabeça estava tão atordoada que eu acabei esquecendo de informar ao seu Adeilton, o dono da gráfica que eu trabalhava, sobre o imprevisto. Cedo a gráfica já estava aberta, então o primeiro lugar que eu passaria seria lá, pra dar uma satisfação.
Saí de casa uma hora depois de Felipe, o dia já estava amanhecendo. Preferi não pôr fones de ouvidos, por precaução e porque eu queria pensar nas coisas que tinham acontecido. No número que o policial havia anotado no meu caderno, no beijo que havia sido roubado de mim...
Eu estava me sentindo tão culpada por não ter odiado cem por cento o beijo do Felipe, mas eu não podia me deixar levar por esse sentimento idiota que pra mim já havia morrido há muito tempo. Fora de cogitação eu ter alguma coisa com ele, não dava, mesmo que eu quisesse, era assinar o atestado de óbito na certa.
O ônibus chegou rápido em relação aos outros dias e eu agradeci mentalmente a Deus, não queria ficar nem mais um segundo fora de casa e ali, parada no meio da rua, desprotegida. Desci do ônibus correndo, já eram sete e quinze, eu teria que ser bem rápida. Caso eu chegasse atrasada, mesmo que um mísero minuto depois, eu não poderia entrar na sala e eu não queria perder mais matéria. Fui imediatamente até a gráfica, que ficava na esquina da minha escola, já estava aberta, ela abria às sete em ponto.

— Seu Adeilton! — disse gritando — É a Amanda! — me apoiei no balcão ofegante.

Ele demorou pouco mais de dois minutos e quando me viu, ficou sério e suspirou. O mesmo já tinha setenta anos, era o dono do seu comércio, mas quem cuidava de tudo eram seus filhos, que moravam ali pela região e podiam ir lá quantas vezes o seu Adeilton quisesse.
O conhecia há dois anos. O mesmo sempre foi conhecido pelos alunos mesquinhos do Pedro II por ser extremamente ranzinza, mas com seus empregados, que geralmente eram jovens estudantes, ele era um amor, incluindo comigo. Mas o problema é que eu estava em falta com ele, sabia que lá vinha problema, de fato ele era um amor, mas muito difícil de lidar.

— Não veio ontem... — disse arrumando as prateleiras atrás do balcão, que já estavam em ordem.

— Seu Adeilton, mil desculpas por eu não ter dado satisfações ao senhor! — tomei fôlego pra continuar — Ontem, eu não pude nem vir a escola. Aconteceu um tiroteio horrível, acabou não dando. — disse rápido — Daí...

— E por que não avisou? — disse me interrompendo — Tive um prejuízo enorme sem você aqui! Você sabe que eu não entendo dessas tecnologias! Eu não fiz uma impressão ontem!

— Eu sei! O tiroteio estourou quando eu estava vindo pra escola. Acabei ficando presa em uma padaria, mil desculpas, por favor! — disse ofegante, com as mãos juntas, clamando pelo meu emprego.

— Não precisa mentir assim. — disse debruçando no balcão, me olhando nos olhos.

— Eu juro por mim morta que não é mentira! — disse com a voz trêmula, quando ficava nervosa, já me batia um desespero e a vontade de chorar vinha — Se eu viesse pra escola, eu poderia tomar um tiro. Tinha uma moça do meu lado que foi baleada, por pouco não foi eu! Eu acabei esquecendo! Eu fiquei muito nervosa, desculpa! — disse claramente chateada.

Quando ele tinha uma opinião formada, era difícil de mudá-la. Pela cara dele eu já sabia que ele não me perdoaria pela falta. Lembrei dos áudios que havia mandado pra Rebeca, da minha mãe desesperada por mim.

— Aqui! Não é mentira! — dei play.

Ele escutou apenas um áudio e ficou me analisando. Eu estava apreensiva, com o rosto franzido, esperando ele dizer algo.

Entre A Paz E O CaosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora