XXI

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Lauren

A praça de alimentação está lotada. O som de crianças gritando e de jovens fofocando é ensurdecedor. Dou uma olhada pelas lojas até encontrar o que estava procurando.
El Pico. Escondido entre um Subway e uma hamburgueria.
- Está ali - falo e pego o braço de Camila, arrastando-a pela multidão até o restaurante, Sinuhe nos seguindo - Natalie me apresentou a esse restaurante nesse verão. Tinha um a um quarteirão do Tilted Rabbit, onde eu trabalhava. Ela sempre pegava algo para viagem lá, estou morrendo de vontade de comer desde que vim para cá.
Entramos na fila, Camila parece ansiosa.
- Podemos pegar qualquer outra coisa se quiser - digo dando um tapinha no braço de Camila.
- Não, não precisa - ela dá de ombros - Eu quero experimentar.
Quando chegamos no balcão, o senhor que estava no caixa nos dá um sorriso e anota nossos pedidos. Então ele olha atrás de nós para a mãe de Camila.
- O que a senhora vai querer hoje? - ele pergunta.
Ela não fala nada, a pergunta foi engolida pelo barulho da multidão.
Então…
Ele repete a pergunta em espanhol, pensando que talvez esse fosse o problema.
A mãe de Camila olha para ele com desdém.
- Eu falo inglês.
Puta merda.
Sinuhe arruma a bolsa no ombro e ajeita as sacolas na mão.
- Estou com vontade de hambúrguer. Vocês podem pegar uma mesa para nós?
Camila acena com a cabeça e volta atenção para o senhor no balcão, que parece confuso com tudo. Quando Sinuhe sai de vista, Camila se apressa em se desculpar.
- Me desculpa, por…isso. Ela só… eu - as bochechas dela ficam vermelhas e eu a vejo pegar a carteira e procurar pelo dinheiro para pagar. A carteira cai e tudo se espalha pelo chão e tenho certeza que ela está torcendo para sumir nesse momento.
- Eu pago - e entrego uma nota de 20 para o caixa antes de me abaixar e ajudar ela com a carteira - Você está bem? - pergunto analisando as bochechas vermelhas dela.
Ela acena com a cabeça, pegamos nossa comida e procuramos uma mesa. Está claro que ela não está bem.
Ela está quieta quando a mãe dela nos encontra, segurando uma bandeja vermelha com um lanche e batatas fritas.
- Estou morrendo de fome - Sinuhe fala, ela bebe um gole de sua bebida antes de começar a comer, como se nada tivesse acontecido.
Camila não tira os olhos de sua comida.
A mãe dela nos oferece batata frita. Pego uma para tentar quebrar o gelo repentino.
- Sabe, no food truck que trabalho, a batata frita é muito boa, cortada fresca - falo, torcendo para tirar um sorriso de Camila, mas não deu certo.
- Eu amo! - Sinuhe fala - Nós temos que ir um dia comer lá! Né, Camila? Seria tão divertido!
Camila acena com a cabeça, mas não fala nada.
- Olha só quem ficou tímida do nada - a mãe dela comenta.
Dou um leve sorriso apenas com os lábios antes de mudar o assunto e perguntar para ela sobre como é ser farmacêutica. Ainda bem que ela fala pelo resto da refeição, me contando sobre a farmácia que trabalha. A fofoca dos funcionários de lá Como ela sabe quais homens da cidade compram Viagra. Como teve um assalto lá algum tempo atrás.
Camila permanece calada.
A única coisa que ela fala é um comentário sussurrado sobre como a comida está boa, quando a mãe dela levanta para jogar o lixo fora.
Quando o sol começa a se pôr, a mãe de Camila nos leva de volta ao campus, nos dando um adeus animado antes de ir embora.
- Você quer subir? - Camila pergunta e eu concordo.
Quando chegamos no quarto dela, Camila pega um garfo e senta na cama, abrindo o saquinho com o que sobrou do almoço.
Ela fecha os olhos e mastiga.
- Eu comeria isso todo dia.
- Quer o que sobrou do meu? - ofereço me sentando do lado dela.
Os olhos dela abrem animados.
- Sério?
Entrego a embalagem para ela.
- Seríssimo.
Ela abre a embalagem e mistura com a dela.
- Fiquei com medo dela fazer algo daquele tipo. Ela sempre faz.
Fico em silêncio, esperando ela continuar. Ou parar. Não vou pressioná-la a falar sobre algo que não quer. Especialmente quando sei como é difícil falar da própria mãe.
- Ela tem um problema com a herança dela, veio criança de Cuba sem falar inglês e cresceu em uma cidade ruim e as pessoas eram maldosas com ela… - a voz dela some um pouco - E parte de mim entende. Quando você cresce sendo chamada de apelidos racistas, sendo empurrada em arbustos durante o ensino fundamental ou alguém tenta atirar em você com uma arma de chumbinho no caminho do mercado. Eu entendo porque uma pessoa passaria a não querer ser associada com a própria cultura, até mesmo com o idioma.
- Esse tipo de coisa já aconteceu com você? - pergunto com dor, depois de ouvir o relato.
- Nada tão ruim assim, mas… eu vejo como minha aparência latina me afetou durante a vida e às vezes, parte de mim não quer aceitar aceitar. Até coisas simples como hoje. Uma frase simples em espanhol. Parte de mim sente que devo rejeitar, não demonstrar ou participar de coisas latinas. Não quero sentir vergonha da minha cultura, mas é difícil quando se cresce com esse tipo de atitude sendo embutido em toda sua vida - ela suspira - Sei que parece besteira.
- Não é besteira - respondo olhando nos olhos dela, para ter certeza que estou falando sério.
- Mas é o que minha mãe acha. Ainda não acredito que ela fez isso hoje. Morri de vergonha.
Balanço a cabeça.
- Não esquenta. Já tive minha cota de vergonhas causadas por mãe - rio e balanço minhas pernas que estão penduradas na cama - Minha mãe já foi expulsa de alguns Applebees por dar pt nas Margaritas de morango de um dólar deles.
Paro de rir quando vejo que Camila está séria, os olhos dela estão me estudando.
Demora um segundo para eu perceber o que acabei de falar. O que acabei de contar para ela.
- Isso deve ter sido difícil. O que… o que você fez?
Limpo a garganta e paro de mexer as pernas.
- Uhh, só levei ela para casa para passar mal na cama. Nada fora do normal.
- Ela sempre bebeu muito?
Coço o queixo.
- Piorou bastante depois que meu pai foi embora, mas pelo menos as brigas pararam.
Coloco um sorriso no rosto, mas não dura mais do que alguns segundos. É muito pesado. Falso. Eu odeio falsidade.
Sinto como se estivesse machucada e sangrando no carpete, na cama, impossível de esconder agora essa parte de mim.
Odeio esse sentimento. Odeio me sentir fraca e vulnerável. Nem consigo olhar para ela, só de pensar em ver a dó no olhar dela me dá agonia.
Por isso escondo as coisas e mantenho segredos. Não quero ser um livro aberto e nem posso.
Camila tenta segurar minha mão, os dedos dela mal encostam nos meus, mas eu me afasto abruptamente e finjo checar meu celular.
- Eu esqueci totalmente de fazer uma tarefa…para… aula de amanhã - resmungo, olhando para tudo, menos para Camila.
Pulo da cama e pego a sacola com as camisetas, enfio meu pé no tênis de qualquer jeito.
- Falando em aula amanhã. Vista algumas das roupas novas, ok? Coloque o passo 2 em ação para partirmos para o terceiro - Falo por cima do ombro.
Ela nem tem tempo de me dar tchau antes que a porta se feche atrás de mim. Saio do prédio, pego minha bicicleta e volto para o meu apartamento.
Decido ir pelo parque, é o caminho mais longo, mas preciso de alguns minutos para respirar.
Eu nunca contei isso… para ninguém.
Nem para Natalie. Ela descobriu sem querer.
Parece uma traição, contar esse segredo para outra pessoa. Me abrir tão facilmente com a Camila e não com ela.
Não consigo deixar de me sentir culpada.
Mais que porra Lauren.
Chego na porta do prédio, desço da bicicleta, tranco em uma das grade e entro.
Ela disse que me ligaria hoje, mas não ligou ainda. Talvez eu devesse ligar. Falar com ela, me abrir do mesmo jeito que fiz com Camila.
Pego meu telefone e ligo para ela.
Me sinto desesperada. Como se precisasse consertar algo sendo que não quebrei nada.
Coloco o celular no ouvido enquanto destranco a porta.
Toca uma, duas, cinco vezes.
Me jogo na cama, conformada em deixar apenas um recado na caixa postal, quando ela finalmente atende.
- Oi, Lauren.
- Natalie! Ei. Oi. Como você tá? - me levanto e começo a caminhar pelo quarto.
- Bem - escuto ela mastigando alguma coisas - Paramos para comer alguma coisa antes de continuar a viagem para Des Moines.
- Legal. Legal. Isso é ótimo.
- Que foi?
- Nada, é que… você disse que ia me ligar hoje, então…
- Okay, mas você me ligou. O que quer? - mais barulho de mastigação.
- Eu só…
Diga alguma coisa Lauren. Você consegue, acabou de, praticamente, contar para Camila sua história de vida.
- Queria conversar. Realmente conversar. Sobre nós. Sobre onde sua cabeça está. Sei que dissemos que íamos esperar até você vir para Pittsburgh, mas sinto que estive meio longe esses dias e só queria te dizer todas as coisas que não te disse naquela noite. Como eu me sinto sobre você. Como eu–
A mastigação para e Natalie me corta na metade da frase.
- Por que está me dizendo isso agora? - me pergunta desconfiada.
- Porque sinto sua falta. Porque não disso isso quando—
- Agora é tarde demais, Lauren - ela fala com um suspiro - te dei uma chance naquela noite e você não quis. Te dei várias chances, por tanto tempo. Então não vamos fazer isso agora só porque se encaixa na sua agenda.
- Certo. Okay. Desculpa. Eu só—
- Te vejo em Pittsburgh, Lauren - ela fala e encerra a ligação.
Ótimo. Que maravilha.
Jogo meu celular na cama e respiro fundo, tomara que em 19 dias, quando Natalie vier para cá, eu posso mostrar a ela como eu mudei.
Preciso que ela veja.
Estou prestes a entrar no banheiro para tirar minha maquiagem quando meu celular começa a tocar. Volto até ele e pego torcendo para ver o nome de Natalie na tela, mas é uma chamada de vídeo, da minha mãe.
Isso é novidade.
Aperto o botão verde para aceitar e vejo os olhos azuis da minha mãe do outro lado da ela.
- Oi, mãe. Essa não é a melhor hora—
Vejo que os olhos dela estão perdidos e a cabeça balançando. Que maravilha.
- Lauren, escuta… - ela fala arrastado, me cortando - Eu só preciso de um pouco de dinh—
- Não - falo ainda nervosa com a conversa que tive com Natalie - Agora não. Eu só… - balanço a cabeça - Eu não consigo agora.
- Mas estou te mandando mensagem! Todos os dias.
Aperto a mandíbula e olho para longe do celular, tentando não chorar, pensando em como a mãe de Camila apareceu para almoçar só para matar a saudade.
- Isso não é suficiente. Você deveria fazer isso. Você deveria querer falar comigo. Saber como estou. Você deveria se importar comigo, ao invés de ser sempre ao contrário.
- Claro que eu me importo com você. Eu só—
- Só se importa quando precisa de alguma coisa - respondo.
E, pela primeira vez na minha vida, desligo na cara dela, as lágrimas começam a escorrer pelo meu rosto no minuto que a tela fica preta.

She Gets the GirlWhere stories live. Discover now