Capítulo sessenta e quatro

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— É uma desordem do sistema límbico no córtex pré-frontal, que não faz as conexões necessárias para o processamento adequado dos sentimentos. — explicou Samuel — De modo prático, isso significa muita dificuldade ou mesmo incapacidade de identificar,  interpretar e expressar os sentimentos, principalmente verbalmente, mas a maioria das pessoas que tem esse problema são inexpressivas e taxadas de frias ou esquisitas e isso dificulta os relacionamentos.

Samuel aceitou o copo de água que ofereceu a ele, bebendo dois goles para melhorar o desconforto na garganta inflamada. Toni voltou a sentar ao lado dele, preocupado com a receptividade da filha. A reação dela poderia levar o seu marido ao céu ou ao inferno.

— Tu tem isso, não é? — perguntou Maria, calma e desarmada, apenas conversando — Como é mesmo o nome?

Samuel levou um momento olhando para ela diretamente,  antes de romper o contato visual e sinalizar positivamente e isso partiu seu coração, pois sabia que ele estava com medo do julgamento dela e talvez até constrangido, mesmo que não expressasse, afinal aquela conversa era justamente sobre isso.

— Alexitimia — falou em voz baixa.

Ele ainda segurava o copo de vidro e o levou até a boca, bebendo mais um gole de água apenas para ter o que fazer. Maria ajeitou a mochila rechonchuda no colo, brincando com um enfeite fofo que tinha pendurado no zíper por um momento, pensativa. Logo enrugou a testa, confusa, se obrigando a ficar concentrada.

— Alexitimia… é tipo uma deficiência? — perguntou, cautelosa com a escolha de palavras.

Samuel a olhou por um segundo, abaixando os olhos para o copo novamente.

— Não, é uma condição neurológica — sorriu com amabilidade por um segundo, sem jeito e deslocado.

O silêncio tomou conta da sala por mais um momento, Maria estava absorta em seus pensamentos e Samuel olhou para ela de forma insistente, antes de fechar os olhos e respirar fundo, em seguida se esticou e colocou o copo na mesa de centro, voltando a sentar, mas dessa vez se recostou no sofá e cruzou os braços. Toni se limitou a observar, colocando a mão grande na coxa do marido, apenas mantendo contato, pois sabia que em momentos de grande estresse isso ajudava Samuel a se manter centrado.

— Não tem cura — contou o músico, continuando a explanar o assunto e ela lhe encarou por um momento,  olhos enormes e sobrancelhas erguidas, mas logo estava pensativa — Eu fiz um tipo treinamento especial na terapia, tive acompanhamento especializado por muitos anos, mas nunca vai ser equivalente a aprender os sentimentos na infância. Então, tudo que eu tenho são algumas reações decoradas, eu aprendi a ler as pessoas pelo contexto da situação para não ser inadequado. Bem, nem sempre funciona, eu ainda posso ser frio e indiferente sem perceber e isso pode magoar as pessoas. Foi justamente por isso que o seu pai me pediu para conversar abertamente com você sobre isso e ele está certo, eu falhei em achar que não te afetaria, então… me desculpe dizer apenas agora.

Samuel forçou um sorriso sem graça, abaixando os olhos para o copo na mesa outra vez, um sorriso frágil e suave que terminou com uma nota de sarcasmo sutil.

— Eu realmente sinto muito por todas as vezes que você não se sentiu acolhida por mim, ficou magoada por não reagir como eu deveria, ou se alguma vez você teve a impressão que eu não te amava ou não te compreendia. Tenho certeza que foi doloroso, então me desculpe, por fazer você se sentir assim.

Os lábios dela tremeram enquanto ela amassava o pequeno enfeite fofo, tomando alguns instantes  respirações profundas.

— E você ama? — questionou, envergonhada da própria necessidade de confirmação.

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