Aquela inocência

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Inocência. É difícil falar sobre ela nos tempos atuais. Digo isso por que já presenciei muitos fatos que comprovam que a inocência e a pureza são escassas.

Já fui inocente, hoje entendo bem mais como as coisas funcionam, dos movimentos das pessoas e dos conflitos de interesses. Mas devo confessar que nos últimos anos da minha vida, passei a me conhecer e me aceitar mais como ser humano que tem direitos e deveres de amar quem quiser.

Sexualidade não é opção, é obrigação.

Devemos aceitar ou encarar uma vida de mentiras.

Quando iniciei minha faculdade de designer, ainda era um inocente sonhador que queria encontrar o grande amor de sua vida em um local romântico como uma viagem para longe, um parque inspirador ou qualquer outro lugar cheio de poesia e significado. A vida aos poucos nos mostra o quanto sonhamos, mas não ligo de sonhar.

Em uma de minhas idas para a faculdade, aconteceu um fato que digo ser a transição do romantismo para a realidade nua e crua. Estava eu, de pé em meio à lotação do trem da manhã, provavelmente com sono, e do nada vi um cara ao meu lado. Bonito, usava um boné quase cobrindo os olhos por completo. Minha mão segurava o ferro de apoio, e lentamente, senti algo...

Aquele garoto estava, vagarosamente tocando minha mão...

Com o tempo, descobri que o último vagão era o local onde as coisas aconteciam. Homens discretamente pegando em seus órgãos íntimos enquanto olhavam para outros, troca de olhares, insinuações.

Mais um tempo e descobri que em determinada estação, o último vagão virava um vagão de pegação gay. Isso mesmo, ali eles se reuniam e faziam todo o possível, principalmente sexo oral.

Uma vez, eu e Ed estávamos indo à cidade e dois rapazes olharam para nós. Sentimos que eles estavam incomodados com nossa presença. Então, eu disse: "Podem ficar à vontade."

Pra que fui dizer?! Começaram ali mesmo um sexo oral. Tivemos até que mudar de lugar para não ver a cena.

Seus dedos tocaram levemente nos meus. Senti o rosto enrubescer. Era real aquilo?

Na primeira vez que tentei ir à parada gay, se não me engano foi no primeiro ano de faculdade, só cheguei à metade do caminho. Conheci um cara, cujo nome não me recordo, mas não fazia meu tipo.

Ele me viu sentado na estação e veio falar comigo,dizendo que, seguindo ao ponto final daquela linha, poderíamos curtir um momento à sós e que eu nem imaginava o que acontecia por ali.

Obviamente que eu não fui, mas o achei bem divertido. Também não fui à parada, faltou coragem.

Com o tempo, comecei a observar o que acontecia naquele determinado vagão, indo até aquele ponto final. Percebi trocas de olhares para mim. E na estação final, um esquema relacionado ao banheiro.

Sim, os caras iam no banheiro para completar a diversão.

Alguns me acenavam. Outros tentavam sinalizar.

Nunca acompanhei ninguém. Nada contra, mas não era meu estilo fazer "banheirão".

Dedos se tocavam. A minha inocência me levou para longe. Será que eu era capaz de perguntar seu nome? Será que finalmente estaria tendo contato com meu primeiro namorado? Será que ele estava apaixonado por mim?

Essas eram atitudes que não concordava. Se havia hotéis, motéis, baladas, barzinhos, por que ir a uma estação, correr risco de pegar doenças de banheiro, por que se submeter a isso? Não é mais fácil agir normalmente?

Não vou negar que já me aproveitei da situação e que já não tive boas ficadas no trem, por que estaria mentindo. Mas jamais deixei ninguém fazer nada além de beijar-me. A sensação de perigo, a emoção de fazer algo aparentemente proibido, tudo isso gerava adrenalina.

Mas tudo tem seu limite.

E este limite que me separava daqueles outros.

Nossas mãos então se fecharam, uma em cima da outra. Estávamos conectados, em meio àquelas pessoas indo ou voltando de seus trabalhos, mergulhados em seus próprios problemas. Eu e o rapaz de boné estávamos ali, parados entre eles, de mãos praticamente dadas, como se o mundo inteiro não existisse.

O mundo nos rejeita. Cabe a nós criarmos mecanismos de defesa, escapes do cotidiano. É normal, as necessidades criam isso. Descobri que alguns gays vêm do outro lado de Sampa só para sentir um pouco de prazer naquele local, naquele banheiro.

Certa vez, encontrei um colega do meu antigo trabalho (era uma graça, e gay, ainda que quando trabalhamos juntos, não tinhamos nos assumido um para o outro) que me apresentou alguns amigos. Eles eram um grupo de caça.

—O que você faz? - Perguntou um dos amigos dele para mim.

—Ah, eu sou design, estou procurando emprego...

—Não, não... o que você faz... por aqui?

Sim, ele queria saber se eu curtia chupar, dar ou comer...

Eu disse que só ia ali para beijar na boca, e eles riram. Soube naquele momento que eu não seria bem aceito no grupinho, ainda bem pra mim.

Acabou que voltei para casa muito pensativo. Como aquele meu amigo do emprego, tão inocente quando trabalhou comigo, a ponto de, na época eu tê-lo chamado para a balada e ele ter respondido "Vamos à igreja" teria se transformado nisso, um cara que ia para a estação "bater uma" e se engalfinhar no banheiro. Era o fim da inocência.

Chegou minha estação. Eu teria que descer ali. A mão do rapaz deixou a minha, e a inocência não permitiu que eu passasse de estação e visse até onde aquilo chegaria. Mas amanhã era outro dia, pensei. O tempo passou e eu tentei todos os horários possíveis. Nunca mais o encontrei. Mas encontrei muitos outros com intenções semelhantes, olhares enganadores e pensamentos ousados. O proibido é mais gostoso e tentador, por um tempo.

Certa vez, me encontrei com um rapaz de 21 anos que nunca havia feito sexo, isso me lembrava a mim mesmo. Nos conhecemos, assistimos um filme e conversamos. Enquanto ele falava, eu me via em suas palavras, um garoto com uma ingenuidade e pureza que há muito não sentia. Sim, eu estava diante da inocência mais uma vez, o que em meio àquele mundo de sexo no banheiro sujo e pegação sem proteção era um verdadeiro milagre.

E eu adoro milagres.

O encontro talvez tenha vindo me mostrar que nem tudo está perdido e que o amor é possível. Acredito no romance e no amor. Podem dizer que sou careta, podem falar que sou um sonhador, mas sei que, se penso assim e se o rapaz de vinte e um pensa assim, então milhões devem pensar e se orgulhar da forma que pensam.

Acredito, até hoje na inocência daquele vagão de trem, daquelas mãos se tocando... e vou morrer acreditando...


Diário de um ex-virgem gayWhere stories live. Discover now