Capítulo 39

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O apartamento nunca recebeu tantas visitas quanto aquele dia e nunca esteve tão bagunçado daquele jeito. Os meus adoráveis e santos afilhados deixaram sua caótica passagem marcada em cada lugarzinho da casa. Até na lavanderia, que é o cômodo menos utilizado do apartamento, eles aprontaram. Colaram pedaços de papel higiênico umedecido na máquina de lavar, pois, segundo suas explicações, isso a deixaria bonita e feliz. Derramaram suco de uva no sofá e, de forma inacreditável, uma criança do tamanho de um botão conseguiu entupir o vaso sanitário. E teve outra que quebrou meu único abajur do quarto. Segundo Salete, eles não costumavam agir dessa maneira. Uns demônios destruidores.

No entardecer do dia, James apareceu angustiado, buscando um ombro amigo. Finalmente, ele havia confrontado Carmen e colocado um ponto final na relação. Ouvi todo o seu drama e ofereci os conselhos habituais com base no manual de palavras motivacionais para amigos. Coisas como: tudo ficará bem ou não se preocupe tanto.

— Você é uma pessoa incrível e vai encontrar novas pessoas. E seus filhos, a Carmen não pode separar de ti. — Adaptei algumas frases do manual para situação que ele enfrentava. James, que estava com a cabeça deitada em meu colo, beijou minha barriga e respirou fundo, tentando conter a choradeira.

Ele era muito emotivo quando estava triste.

— Os meus filhos são as minhas únicas preocupações e não quero que pensem que os abandonei. — disse, pela enésima vez a mesma coisa. Repeti o que tinha dito anteriormente e fiz um carinho em seu rosto. James fechou os olhos com meu toque e, mais uma vez, beijou minha barriga. — Como seria se ficássemos amigos desde o primeiro dia que nos vimos na escola. Seríamos um casal? — perguntou ao abrir os olhos para me encarar.

Os meus pés começaram a formigar ao lembrar do dia que cruzei pela primeira vez com o James no corredor do colégio. Eu corria feito uma maluca para sair daquele inferno quando esbarrei nele, derrubando os livros que segurava nas mãos. Aquele fatídico dia foi um dos piores que presenciei na vida. A turma mais descolada e perversa da escola roubou o meu diário e descobriu a minha paixão secreta pelo garoto mais cobiçado. O Douglas Douglas. Um indivíduo esnobe e ex-rico, com cabelos castanhos na altura dos ombros e com o mesmo primeiro nome no segundo. Diziam na cidade que foi um erro do cartório e que os pais só descobriram quando ele se matriculou na escola. Para evitar burocracias, resolveram deixar como estava.

Foram criados vários desenhos de baleias em cartolinas e espalharam-se por toda a escola com a seguinte frase: Já viram uma baleia apaixonada? Procure a Laura baleia e veja com os seus próprios olhos! Abaixo dessa frase, foram coladas cópias das minhas declarações de amor pelo Douglas Douglas. Eu só queria desaparecer do mundo após a zombaria e saí correndo da escola em direção aos trilhos do trem. Sentei bem no meio deles e aguardei o trem passar por cima de mim, esmagando o meu corpo. Pena que antes disso acontecer alguém me reconheceu e me levou para casa. Minha mãe, querendo me fazer perceber a dimensão do perigo que coloquei a minha vida, me bateu muito. Chegou até me tirar sangue com suas chineladas e chicoteadas. Se não fosse meu pai para me defender, ela morreria me batendo ou eu morreria apanhado.

Eles brigaram muito feio por minha causa e eu passei quase uma semana sem conseguir pronunciar uma palavra para não aborrecer ninguém ou para minha presença passar despercebida.

Mamãe nunca me perguntou o que houve na escola e nem se desculpou em deixar marcas por todo meu corpo.

Foram dias com corpo doendo. A alma nem se fala... dói até hoje.

— Não, sua mãe não deixaria você se casar com a menina que enviou fotos nuas para o filho do pastor e ia dançar em um cabaré escondido dos pais. — falei, com um humor mórbido, fazendo-o esticar os lábios em um forçado sorriso.

Descendo do SaltoWhere stories live. Discover now