"Wicked Games" 39. Capítulo

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Estávamos agora sentados no chão do quarto, eu encostada ao móvel  e ele no extremo oposto encostado à cama. Tinha um cigarro entre as ponta do dedos e o fumo brincava em torno dele. Notava agora, por baixo do cabelo molhado que chegava quase ao fundo do pescoço, umas mais feições mais duras, mais rudes. Conseguia entender pelo seu constante desvio de olhar, pelo engolir em seco, pelo maxilar flectido, que estava à procura de palavras. À procura de uma forma de começar a conversa, muito provavelmente, mais intimidante que já tivera.

Não falei. Flecti os joelhos contra o pito e limitei-me a observá-lo. Como estava sem camisola, notei pela primeira vez uma série de cicatrizes no ante-braço esquerdo. Fundas... muito provavelmente auto-infligidas. Mas quem sou eu não é? Quem sou eu para sentir pena ou constrangimento em vê-las, quando eu própria tenho uma colecção delas? Não sou ninguém. Porque eu sei que a dor às vezes é tão forte, a raiva é tanta... Segurei nas pontas das mangas da minha camisola ao lembrar-me disso.

-Eu tenho um problema. Eu não sei se existe alguma denominação para ele, não sei existe definição para aquilo que sou ou para aquilo que faço, ou para aquilo que sinto. Não sinto pena do que fiz nem das pessoas a quem o fiz. 

-Quantos? -Questionei baixinho fixada no seu cigarro.

-Três. Dois homens... uma menina.

-Conhecias?

-Depende... A primeira vez que o fiz não foi por impulso próprio. Foi uma ordem. Era pequeno mas estava, aparentemente, treinado o suficiente para executar. Lembras-te da primeira família que te falei? - Anui em total silêncio. - Uma noite cheguei a casa e ele puxou-me pelo colarinho até ao barracão que ficava no fundo da herdade onde morávamos. Demorei um bocado a entender o que se passava, mas acabei por me aperceber que estava alguém sentado numa cadeira atrás da carrinha. Um homem com um saco de serapilheira atado na cabeça. Consegui entender pelas mãos lisas que era relativamente novo. A única explicação que recebi sobre ele foi que ele «sabia demais» e «meteu-se onde não devia». Consegui ouvi-lo chorar baixinho. A condição que me puseram foi muito simples, se queria ter casa e comida então teria de premir o gatilho. Caso contrário estava totalmente à vontade para regressar ao orfanato. A minha mãe estava sentada ao fundo do armazém com o sorriso mais nojento que já vi na minha vida. Violet... Eu podia ter voltado ao orfanato. Mas sabes, era um orfanato com homens bem mais velhos que eu, padres na sua maioria, a gostarem demasiado de crianças pequeninas. Principalmente dos meninos... Carne fresca, pelas palavras deles... E usavam esse meninos - a sua voz estava trémula.- para satisfazer os seus desejos sórdidos. Uma cambada de porcos disfarçados de mensageiros da palavra de Deus que até filmes faziam connosco... 

Em momento algum me olhou directamente. Tinha os olhos marejados em lágrimas e concentrava-se apenas no seu cigarro.

-Não pensei muito e fiz o que tinha a fazer. -Continuou ao puxar do cigarro. - Calibre 38. E disparei até esvaziar a câmara. E ela viu tudo... Havia qualquer coisa acerca de sangue e violência que lhe dava um prazer desumano. Riu-e e puxou o meu "pai" para ela... Aquilo deixou aquela puta perdida de desejo. Já eu limpei a arma e deixei-a no sitio onde a peguei. Não senti pena daquela pessoa. Nem um bocadinho, mas na altura isso não me assustou. A segunda vez foi mais tarde, num orfanato. Ele era mais velho que eu, bem mais alto, entroncado. Todos os dias apanhava enxertos de porrada dele. Com soqueiras, ferros quentes , pedras... o que ele se lembrasse. Mas eu não fazia nada. Tinha medo e chorava. E ele ria-se tanto do miudinho em quem ele batia enquanto o resto da escumalha dos amigos dele assistiam juntamente com a restante canalha do orfanato. Faziam troça de mim e comentavam baixinho. E eu não fazia nada. Até ao dia. Violet - olhou-me bem no fundo dos olhos. - Eu senti uma raiva tão grande, Eu nem sequer pensei no que estava a fazer. Agarrei num paralelo e... o resto suponho que imagines. Dei tanto, tanto. Não abri a boca nem uma vez para dizer fosse o que fosse. E só parei quando me agarrei ao pescoço daquele filho da puta até ver os olhos dele ficarem baços. Já não respirava. Quando me levantei não ouvi um único comentário, e aí senti pela primeira vez o sabor do medo e do respeito dos outros para comigo. Todos tinham medo de mim no corredores e eu gostava disso. Ninguém nunca mais teve coragem de me enfrentar. -Respirou fundo e perdeu o sorriso perigoso com que contara aquela história. - A última foi uma menina, uma miúda mais velha que eu que conheci num liceu numa das piores fases que passei. Violet nessa altura eu dava-me com as piores pessoas que podiam existir na zona. Traficante ou filhos dele, o género de pessoas que não obedecia a regra nenhuma. A nossa vida era aparecer pedrados às aulas, isto se aparecêssemos. Eu não gostava particularmente de andar com eles, eu gostava do respeito que recebia por parar com eles, gostava da atenção que recebia... Gostava das regalias que tinha por causa disso e das coisas a que tinha acesso. Violet... eu fiz coisas nojentas com eles. Desde transportar cocaína para outro Estado a violar duas raparigas bêbadas em grupo. Eu não estava muito pedrado quando o fiz. Heroína era a minha menina predilecta. Minha e da Angelina. Uma miúda mexicana, morena de olhos verdes, linda, mais velha que eu e com quem eu passava todos os minutos que podia. Parecia um otário a observa-la em qualquer merda que ela fizesse... mas havia qualquer coisa no jeito dela que me atraia. Lembras-te de ter ter falado da mulher com quem perdi a virgindade, aquela muito mais velha que eu? - Olhou-me de soslaio e mais uma vez limite-me a anuir. - Essa mulher era a Angelina ou conhecida entre nós como Angel. Era velha demais para parar com gente como nós. Mas o vicio era mais forte e o cadastro dela também não lhe permitia nenhum outro tipo de amigos. Foi ela quem, em momentos em que estavamos totalmente pedrados em cima no telhado da escola, me falou sobre a Teoria da Atracção do Universo, falou-me sobre músicos com mensagem. Ela incutia-me as merdas que eu não aprendia em mais lado nenhum. Eu era absolutamente louco por ela, eu era uma criança mas sentia-me um homem. - De novo os olhos dele encheram-se de lágrimas e vi como que um muro de emoções se desmoronar em torno dele. - Mas infelizmente, gostávamos demais da agulha e ela de nós. Estávamos no barracão do carvão perto da estação de comboios e ela pediu-me para lhe injectar a dose porque estava demasiado trémula para acertar na veia. E eu fiz... O problema Vi é que... ela não acordou mais. Overdose de heroína administrada por mim... Sabes a agulha é a mais silenciosa das assassinas...

Ficou um silêncio estranho no quarto enquanto ele chorava num murmuro. Preparava-me para falar quando ele continuou. 

-Nenhuma das marcas que vês aqui foram por querer aliviar a dor. Esta foram porque o meu anjo na Terra voou por minha causa Violet. E eu queria ir ter com ela. Mas fui cobarde...  Demasiado cobarde. Três mortes. Agora que já sabes... suponho que vás contar aos teus pais ou chamar a polícia certo? Não te julgo por isso. 

Não falei. O que é que era suposto eu dizer? Ele considerava-se um monstro quando na realidade, o mundo em que ele vivia é que o fez tornar-se em um. Levantei-me e gatinhei até ele perante o seu olhar confuso. Sentei-me no seu colo e tirei-lhe o cigarro dos dedos apagando-o num copo que estava perto. Ele não teve qualquer reacção, apenas me olhou com os olhos ainda com lágrimas. Beijei-o como quem diz «eu não te vou abandonar. Nem julgar.» 

(...) 


Leitores e leitoras só para informar que a partir de agora irei publicar capítulos às terças feiras à noite e sextas feiras à noite. Um grande beijinho


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