O Oceano Escarlate

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Nós nos envolvemos com o mundo ao redor, absorvemos lugares, pessoas, ideias e nos deixamos influenciar pela realidade que nos cerca. Em outras palavras, nós nos alimentamos também daquilo que podemos sentir. Nós somos inspiração.

Isso é maravilhoso.

Mas e se nós nos deixássemos impregnar por tudo o que há ao nosso redor, consumindo avidamente o que os sentidos podem captar, represando-os em nossa mente devido a uma fome voraz e a um desejo incontrolável pelo que a vida pode nos proporcionar? Num vazio espiritual tão profundo que nos obriga a devorar sem desperdícios, sem jamais esquecer, sem perder quaisquer vistas ou memórias em nossa mente.

Eu afirmo a ti que existiu no mundo uma mulher assim, uma mulher que abriu a janela do espírito de tal modo que se perdeu na imensidão. Invadiram o que havia de mais puro, os mais valiosos segredos da sua intimidade. Eles profanaram tudo o que mais lhe importava, eles asfixiaram as suas míseras vontades por meio dos seus olhos.

Lembro-me daquela frase que diz que os olhos são as janelas da alma. Talvez para alguns isso sugira que é possível navegar e apreciar a intimidade do ser.

Mas não para essa mulher, digo, não da maneira romantizada da coisa.

Sim, é verdade que todos nós somos capazes de nos perder nas nossas ilusões, mesmo os mais convictos. Mas, por acaso, você que me lê neste instante já perdeu o próprio reflexo no espelho da vida? Já sentiu vozes a todo tempo dizendo o que você devia ou não fazer?

Já perdeu de si mesmo em meio ao tempo-espaço psíquico a ponto de não poder compreender o significado de ser ou estar? Já se perdeu no presente em meio aos vislumbres do futuro, acreditando observar as imagens do passado?

Essa história explica como, para algumas pessoas, respirar é pesaroso e difícil. Pode entender o que isso significa?

Lamentavelmente, somente a morte poderia aliviar a loucura, uma vez que o ser humano não está apto a saber sem sofrer. Experimentar requer um enorme estresse. A humanidade não está apta a abrir todas as portas da percepção sem que o seu cérebro escorra pelos próprios poros em decorrência da descarga sensorial que isso geraria em sua psique.

Mas, pensando melhor, vocês não precisam se preocupar com isso agora.

O que precisam saber é que abrir os próprios olhos, para ela, era como mergulhar no oceano mais profundo. Era como permanecer entre a vida e a morte sem poder emergir e respirar do mesmo ar que nós. Era extremamente doloroso.

A essa mulher dávamos o nome de Eclipse.

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A história dela começa muito antes do seu nascimento. No século XV, em meados de 1420.

O Malleus Maleficarum — O Martelo das Bruxas — foi o livro criado para julgar as bruxas apropriadamente conforme a tradição local.

Mas diferente do que sabemos hoje, esse livro não foi criado por Heinrich Kramer.

Anos antes de Kramer lançar sua cópia, um exemplar único foi passado de mão em mão pelos sacerdotes da igreja.

O primeiro exemplar, ou seja, esse livro que inspirou aquilo que viria a ser a versão que Kramer criou anos depois, era um abominável artefato místico, cujos segredos jamais haviam sido completamente desvendados.

O livro assustador era feito do couro de incontáveis prostitutas. Suas palavras foram escritas com o sangue e vísceras de virgens férteis, em papiro banhado pelo sêmen de animais. Possuía um único olho fendido da cor amarelo-pálida saindo do centro de sua capa.

A essa primeira edição foi dado o nome de Igne luxuriae.

O problema surgiu com o crescimento de duas faces da religião cristã. Os católicos e os protestantes não somente disputavam fieis entre si como também com as inúmeras religiões pagãs que se empenhavam para resistir, mas essa rivalidade tornou-se uma urgência em especial para as duas faces do cristianismo.

Nasceu então a disputa que mudaria grande parte do mundo que conhecemos hoje.

Essa disputa forçou as duas vertentes a buscarem mais devotos. E os declarados bruxos, por seguirem o paganismo ou por serem heréticos de uma maneira ou outra, foram aniquilados sem dó pelos rituais sagrados praticados a partir do conhecimento armazenado nesse livro.

A inquisição estava em seu início, mas a corda insiste em arrebentar no lado mais frágil, não é mesmo? Parece ser a natureza da sociedade.

E é por isso que digo que grande parte de suas vítimas, naquela época, eram mulheres.

Principalmente aquelas que se deixavam levar pelo desejo carnal, algum instinto sexual ou ainda que possuíam inclinações homossexuais, ou que sugerisse algo semelhante. A Igreja muitas vezes alegava que estavam sendo dominadas por espíritos malignos e que a melhor forma de purificá-las era através da fogueira. Mas a verdade era que mesmo existindo um espírito para cada ação humana e outros milhares para os conceitos que nós ainda desconhecemos, grande parte d não eram necessariamente malignas, nem benignas.

O que raramente era colocado em cheque era a megalomania daquelas vertentes religiosas, que devoravam tudo a sua frente.

O que é semelhante, é fácil de prever e controlar. Ser diferente é perigoso. Eram todos maniqueístas imersos no seu mundo cinza.

Mas o povo sempre teve dificuldades de entender as necessidades e o funcionamento do mundo espiritual para poder se defender das acusações de heresia, sequer para não serem vítimas do espirito do ódio que se manifestava em meio à turba.

Acima disso, o que realmente complicava a situação era a incapacidade de acessar o conhecimento disponível apenas as castas da alta hierarquia.

Conhecimento é poder. Quem tinha poder tinha mais riqueza, e quem tinha mais riqueza, por consequência, tinha mais conhecimento. Sempre foi assim e sempre será até o fim da humanidade. A menos que outra espécie bem diferente da nossa venha dominar.

Mas toda a situação daquele lugar mudaria nos anos seguintes. O rei Charles VI, o Louco, estava com os seus dias contados e, o pior para todos, se tornou incapaz de governar.

Com a loucura do rei, a França se via em grande perigo. O governo estava fraco, os motins eram frequentes, o país era alvo fácil para os ingleses, mas Charles cavava buracos no jardim sem motivações lógicas e andava nu pelo palácio, enquanto a pobreza assolava as suas terras.

Mas o que essa história toda tem a ver com a nossa sensível protagonista?

Bem, não é possível falar de Eclipse sem contar antes a história de duas outras mulheres.

A mais importante delas, bem conhecida por vocês.


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Revisado dia 04/04/2019

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