Passado em Família

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Ano de 1461.

— Desirée... Desirée, minha filha, venha cá! — Tentou gritar a senhora, mas sua voz vacilava pela idade. — Onde está essa pestinha?

Anna caminhou com extrema dificuldade até a porta da pequena casa, suas pernas pesadas e inchadas estavam cobertas por uma longa meia xadrez, verde e vermelha, mal costurada. Calçava grandes botas e um vestido de uma tonalidade marrom, aparentemente encardido pelo uso. Desirée dizia sempre que os seus cabelos lembravam chumaços de algodão. Suas engraçadas e cansadas sobrancelhas debruçavam-se sobre seus olhos.

Um rangido da porta de entrada pôde ser ouvido.

— Aí está você. Por que demorou tanto?

— O que foi, vovó?! Eu tinha ouvido na primeira vez — reclamou.

Desirée era uma criança grande para a idade. Com seus dez anos, já alcançava a altura de sua avó que, por sua vez, nunca fora muito alta. Seus cabelos eram muito mais compridos também e seu corpo era magro, devido à condição em que vivia. Usava um lindo capuz vermelho vivo feito pela avó e uma bota mal lustrada. Ela estava vendada com uma faixa branca manchada de sangue.

— Nós precisamos trocar a sua venda, menina. Ela está manchada de sangue e você sabe que ninguém pode te ver assim. Vamos, vire-se para eu colocar.

Desirée obedeceu a senhora, que começou a desamarrar cuidadosamente a faixa que cobria os olhos da menina. Ao remover a espessa faixa de pano, duas lágrimas caíram.

— Mantenha seus olhos fechados. Vou colocar a outra — orientou Anna, pacientemente.

Desirée tremia seus longos cílios, esforçando-se para manter os olhos fechados. Sua sobrancelha pontiaguda inclinava para o horizonte do seu rosto. Ela rangia os dentes e tremia os braços.

— Acalme-se, está tudo bem. Lembre-se de que nós já fizemos isso milhares de vezes. — Sorriu a senhora, colocando a faixa recém lavada no rosto da pequena.

— Cuidado com os meus olhos, vovó! Devagar! — queixou-se a garotinha, aflita.

— Prontinho — avisou Anna. — Eu já acabei. Viu só como não precisava se preocupar? — Riu. — Já pode se levantar. — Deu dois tapinhas nos ombros da menina.

Desirée tateou seu rosto, verificando se estava tudo em ordem

— Você colocou em mim a venda preta? Não me diga que...

— Sim. Eu preciso que vá até a casa de sua tia e leve um pacote para ela. Essa faixa não vai manchar tão rápido quanto a outra, mas, por favor, tome cuidado. Eu não sei o que faria se outro acidente como aquele acontecesse de novo.

Desirée baixou a cabeça em silêncio.

— Sim, eu sei que você não quer isso. É muito doloroso, não é mesmo? — Anna abraçou a menina. Seu corpo macio era quente e reconfortante como o colo uma mãe experiente. — Não se preocupe. Nós vamos descobrir juntas uma maneira de desfazer isso.

Desirée soluçou ao ser abraçada pela avó.

Anna, por sua vez, esfregou suas costas, acariciando-a.

— Está tudo bem, está tudo bem.

Não se preocupava à toa, já que elas viviam uma vida perigosa naquela região tão longe da civilização, especialmente agora que o avô de Desirée tinha morrido. Ela, mesmo cega, era a única que tinha condições para levar o tecido até a sua tia Elise.

Ao parar de chorar, Desirée se desgrudou do conforto do abraço, secando parte do rosto com o pano do capuz.

— Vamos, aqui está o pacote. — Anna entregou à garotinha uma cesta trançada. — Diga a ela que todo o material está aí e, se ela precisar de mais, mande que anote a encomenda, pois o material necessário para continuar a produção está para chegar. Mande lembranças a todos por mim — concluiu.

Idílica MisantropiaWhere stories live. Discover now