PRÓLOGO

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Fogo, chuva e sangue.

Eu me lembro muito bem destas três palavras. Elas sempre fizeram parte de minha vida, como uma cicatriz que nunca conseguira se fechar. Por mais que sempre existissem juntas, também sempre anularam umas às outras. Quase um ciclo perfeito, eu diria. E assim eu me lembro daquela noite.

Uma noite escura e chuvosa, tão fria quanto eu podia me lembrar. As ruas pouco iluminadas da cidade ganhavam uma movimentação atípica. Embora a fina chuva, luzes de tochas engoliam a penumbra da noite. Em diversas vielas, ouvia-se cochichos e burburinhos. Cidadãos ociosos saíam de suas casas para observar uma marcha silenciosa. Cinco cavaleiros escoltavam um prisioneiro rumo a sua sentença, uma execução.

A praça daquela cidade estava lotada, algo não muito comum em uma madrugada. Uma multidão ansiosa esperava o prisioneiro com uma recepção não muito calorosa. Vaias, tomates podres e até pedras eram jogadas na direção daquele prisioneiro. Mesmo sentenciado a morte, os cavaleiros o protegiam com seus escudos. Grande parte de suas armaduras negras já estavam tingidas por tons de vermelho e marrom dos tomates e frutas podres que caíam sobre eles.

Uma grande plataforma esperava o prisioneiro no centro daquela praça, como um palco esperando sua atração principal subir. O carrasco afiava seu enorme machado. Com seu olhar indiferente sob sua máscara negra, era nítido o quão pouco se importava em tirar apenas mais uma vida.

As luzes das centenas de tochas tremeluziam à frente de minha visão, pouco conseguia ver acima daquela plataforma, pequeno como eu era, tive que me esgueirar ao máximo entre a multidão afim de achar um bom ângulo para observar. Afinal, eu precisava ver aquilo, mais do que tudo, eu tinha que ver o prisioneiro escapar.

Dos cinco cavaleiros, apenas um subiu com o prisioneiro. Ele não dispunha de um elmo, mas pouco conseguia ver de seu rosto. Eu ainda estava longe, a chuva e as luzes das tochas ofuscavam minha visão. Quando finalmente consegui um bom ângulo, notei um tapa-olho bem característico naquele cavaleiro.

Por vezes, o cavaleiro do tapa-olho tentava conversar com o prisioneiro, mas dele não ganhava nada além de um silêncio frio e inexpressivo. Seu olhar era fixo na multidão, como se procurasse por alguém.

A multidão enfurecida ameaçava subir naquela plataforma, tomados por um ódio irracional. Não houve tempo para últimas palavras, a multidão não esperaria mais um minuto. O cavaleiro e o prisioneiro assentiram sem pestanejar e prosseguiram ambos em um silêncio mutuo.

O prisioneiro, por fim, se ajoelhou sobre a base de madeira que o esperava e, novamente, pairou seu olhar sobre a multidão, finalmente encontrando o que procurava.

Eu queria poder gritar para que ele saísse de lá, queria poder salvá-lo, mas nada pude fazer além de continuar olhando em seus olhos. Tão profundos quanto eu podia me lembrar, os olhos de meu pai. Seus lábios se mexeram levemente e palavras inaudíveis daquela distância foram direcionadas a mim. Naquele momento, eu percebi que ele não escaparia. Aquela seria a última vez em que eu veria aqueles olhos.

Fogo, chuva e sangue.

E assim, aquela noite se encerrava com a terceira palavra, a qual se espalhava pelo chão da praça, sendo levada pela segunda palavra, que apagava a primeira. Logo tudo se cessava, e com a calmaria, uma quarta palavra surgia.

Naquela noite eu ainda não sabia, mas o ciclo voltaria a se repetir.

Fogo, chuva, sangue e escuridão. 

O Matador de Deuses - TenebrisWhere stories live. Discover now