Capítulo 13 - Invernia

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Ano de 1720, Inverno. Montanhas nevadas.

O cheiro de carne queimada ainda me enoja. Esse cheiro agridoce, misturando-se com o odor pútrido desses homens, é como um banquete de náusea. O pior é saber que a carne queimada é a minha.

— Vamos lá Sir Greggory, acabe logo com essa merda, não tenho o dia todo — falei ao brutamontes. Ele me olhou de canto dos olhos, com um semblante de quem não gostou muito, mas continuou esquentando a lâmina na fogueira.

Sir Greggory pressionou a lâmina, de cor alaranjada de tão quente, em meu ferimento. Eu não gritei, apenas cerrei os dentes enquanto a fumaça e o cheiro de carne defumada, subia no ar.

Cauterizar uma ferida não é uma das coisas mais agradáveis de se fazer, mas é necessário. Uma ferida exposta, pode até ser esquecida, mas ela não se esquece de você. Mais cedo ou mais tarde vem a febre, em seguida, a fraqueza, e finalmente a morte.

— Aquele magricela tinha razão — Greggory começou a falar, o que me surpreende, já que ele nunca foi de conversar. — Você tá ficando fraco. Antigamente uma ferida como essa não seria nada.

Ele tinha razão, todos tinham razão. Estou a cada dia mais fraco, mais debilitado. Cada vez mais, sinto a morte ao meu encalço. Ela sempre me rondou, tentando me levar com ela a qualquer custo. Mas dessa vez era diferente, dessa vez não havia nada que a impedisse de conseguir o que sempre quisera.

— Sir Greggory. — Olhei em seus olhos, ou pelo menos no único olho que ele ainda tinha. — Até onde você me seguiria? — perguntei.

— Eu disse que te seguiria até os confins da terra. Enquanto eu puder continuar matando, estarei ao seu lado — respondeu Greggory, alisando sua barba negra e grotesca.

— Matar... isso é algo que fazemos bem. — Suspirei de alívio quando ele terminou de passar a atadura em meu ombro. Penso em como é irônico deixar um homem com o apelido de açougueiro fazer um curativo em você.

Olhei para o céu e recebi mais más notícias. A neve já começava a cair. Isso significa que estávamos finalmente no inverno. Aparentemente seria o inverno mais longo que esse mundo já presenciara. Afinal, sem um sol para aquecer, o gelo e a neve nunca derreteriam.

Olhei em volta do nosso pequeno acampamento. Havia poucos homens e algumas fogueiras. Se antes já estava ruim, agora tudo parecia acabado. Aqueles homens não aguentariam por muito mais tempo. Estavam há dias com pouca comida e sem descansar direito. O frio os castigava diariamente e, com certeza, deviam se perguntar todos os dias se ainda valia a pena me seguir.

Acendi uma tocha e me afastei do acampamento. Segui até a beirada da colina em que estávamos acampados e me sentei em uma pedra. Comecei a observar o horizonte escuro e exaurido do reino. E pensar que estas terras já foram tão lindas no passado. Agora não passam de árvores mortas e cadáveres perdidos.

Talvez fosse a hora de desistir. Eu vim até esse lugar com o objetivo de formar um exército, e estava voltando com menos homens do que quando cheguei aqui. Talvez se ela estivesse viva, nada disso estivesse acontecendo. Ela com certeza estaria voltando com suprimentos e um exército enorme agora. A verdade é que eu não sirvo para comandar, no fim das contas, eu só sirvo para uma coisa:

Matar.

— Lorde comandante! — Essa voz... Erwin.

— O que é? — Me senti incomodado, por ter interrompido meu momento de sossego.

— Desculpe incomodá-lo, mas temos um problema.

— Que tipo de problema? — perguntei, meneando os olhos em sua direção.

— Um dos grandes. — Erwin veio até mim e me entregou uma pequena luneta de bolso que sempre carregava consigo. — Veja no horizonte. Tochas, vindo em nossa direção.

Olhei pela luneta e percebi o motivo dele estar tão inquieto. Não uma, não duas tochas, mas centenas delas. Homens do rei, vindo em nossa direção, provavelmente sedentos por nossas cabeças.

— Aquele maldito rei de merda! — gritei, totalmente irado e jogando a luneta no chão. — Como ele pode ser tão egoísta a ponto de mandar seus homens atrás de meia dúzia de moribundos. Ainda mais em meio a esse caos?

— Comandante, sugiro descermos as montanhas pelo Sudeste e depois marcharmos para o sul, onde o clima deve estar mais quente. Contornando a montanha, eles nos perderão de vista — sugeriu Erwin, que por um momento, ficou me fitando esperando uma resposta.

— Faça o que quiser, Erwin — respondi, dando de ombros e voltando a ficar mais calmo. Em seguida, me virei para ele e disse: — Eu te nomeio lorde comandante. — Sua expressão inabalável, deu lugar a uma expressão confusa.

— Como assim? Que brincadeira é essa?

— Não é nenhuma brincadeira — respondi. — Eu desisto, não sirvo para comandar. Só estou matando todos vocês. Salvem as suas vidas, eu ficarei aqui e morrerei sozinho, afinal, sou eu quem eles querem. E não fará diferença nenhuma se eu morrer, eu já estou morto mesmo. O que restou de mim, não passa de uma casca vazia.

Erwin continuou me fitando em silêncio, aparentando estar inconformado. Não era para menos, ele depositava toda a sua confiança em mim. Mal sabia ele que nunca fui digno dela.

Ah... eu me lembro. Me lembro daquele dia, daquele fatídico dia em que conheci Erwin. Ele não passava de um cavaleiro bêbado e idiota. Mal sabia eu que sobreviveria tanto. Talvez seja a pessoa que mais subestimei em todo esse tempo. Estou feliz de ter errado, estou feliz de ter se mostrado tão útil em todo esse tempo. Se a magia deste mundo não tivesse se esvaído há muito tempo, talvez ele fosse um dos homens mais poderosos vivos.

— Se é assim, ex-comandante... — Erwin finalmente entendera. Ele era o único capaz de salvar a vida desses homens.

Ele se virou para mim e, antes que eu falasse algo, me deu um soco tão forte que me fez cair da pedra onde eu estava sentado. Eu juro que se fosse outra pessoa, eu teria o matado na mesma hora, mas Erwin me deixou mais confuso do que com raiva.

— Como ousa... — Erwin apertou os punhos, franzindo o cenho e me olhando bem nos olhos. — Você não tem o direito! Não tem o direito de desistir agora. Não depois de tudo que passamos por sua causa. Se tem uma pessoa que não tem esse direito é você.

Suas palavras pareceram duras, mas foram profundas o bastante para me fazer lembrar. E ele tinha razão. A vida de todos esses homens estava em minhas mãos. Todo o sangue derramado por minha culpa, estava sobre minha cabeça. Desistir agora, seria como desonrar todos em que um dia eu já amei. Seria desonrar até mesmo ao sacrifício dela.

Eu comecei a rir. O quão ridículo eu devia parecer naquele momento? Caído na neve, reclamando da própria vida e escondendo atrás do próprio rabo como um covarde. Ainda por cima, ter que levar um murro de Erwin. Como eu sempre digo, esse mundo pode ser tão irônico às vezes.

Erwin aparentou entender o motivo de minha risada. Sabia muito bem que não era a minha loucura voltando a me assombrar, mas sim a minha consciência, ou em outras palavras, minha sanidade.

— Sir Jack. — Erwin estendeu a mão para mim. Eu peguei em sua mão e me levantei, ficando de frente para ele. — Eu o nomeio Lorde Comandante da ordem dos Cavaleiros Brancos.

— Parabéns, Sir Erwin — respondi com um ar divertido. — Você será falado nos livros como o comandante que liderou a ordem por menos tempo na história dos cavaleiros. — Ele sorriu e apertou a minha mão.

— Quais as ordens, comandante? — Erwin perguntou.

— Norte — respondi e apontei para as montanhas. — Subiremos o mais alto que pudermos.

O Matador de Deuses - TenebrisTempat cerita menjadi hidup. Temukan sekarang